“Sorte a dele”, diz uma vizinha a Guida (Julia Stockler), após a revelação do sexo do bebê que essa última acabou de ter. Nascer mulher, no mundo apresentado por “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, é uma espécie de maldição. O filme fala de um machismo tornado cotidiano, de crueldades subterrâneas cometidas por homens contra as mulheres que dizem amar. Não há agressões físicas por parte dos personagens masculinos, mas as vidas das protagonistas Guida e Eurídice (Carol Duarte) estão a mercê deles. O abandono, a expulsão de casa, os segredos guardados por orgulho ou para exercer controle. Instrumentos poderosos nas mãos de sujeitos fracos, ordinários, mas socialmente dominantes.
“A Vida Invisível” trata, portanto, de estruturas de opressão já socializadas. Não é preciso que a narrativa construa grandes vilões, homens detestáveis contra os quais seria possível algum tipo de vingança catártica. A questão não é propriamente individual. “No começo arde”, diz Zélia (Maria Manoella) a Eurídice, descrevendo uma relação sexual. “No começo dói mesmo”, diz Filomena (Bárbara Santos) a Guida sobre a amamentação. Motes repetidos às mulheres desde a juventude, habituando-as à dor decorrente da submissão.
Estruturas que perduram. Abandonada pelo pai de seu filho, Guida guarda semelhanças com outras figuras femininas do cinema de Aïnouz, como Hermila (Hermila Guedes), de “O Céu de Suely” (2006), e Violeta (Alessandra Negrini), de “O Abismo Prateado” (2011). A dominação à qual as protagonistas de “A Vida Invisível” são submetidas é, claro, mais implacável, dada a ambientação da maior parte da história no Rio de Janeiro da década de 1950. Mas mesmo as mulheres do século XXI presentes em “O Céu de Suely” e “O Abismo Prateado” têm espaços limitados para o empoderamento. Elas seguem vítimas do abandono e do juízo masculinos, apesar de conseguirem, ao final, seguirem rumos próprios.
Daí a importância relativa da dimensão “de época” de “A Vida Invisível”. A reconstituição existe e é cuidadosa, mas o diretor permanece o tempo todo mais interessado nas suas personagens, mantendo a câmera sempre próxima delas, do que num panorama contextual. Recurso comum ao cinema de Aïnouz. Visualmente, o filme é fragmentado, quase etéreo, imergindo na impressão de uma história que foi como não deveria ter sido. Uma memória triste de uma senhora infeliz, no fim de sua vida. Ainda que a narrativa de “A Vida Invisível” não seja construída como um longo flashback e que o presente de Eurídice, então interpretada por Fernanda Montenegro, se reduza ao epílogo. “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, título do livro de Martha Batalha e do filme num primeiro momento, pode se referir tanto à existência apagada de uma das protagonistas ao lado do marido Antenor (Gregório Duvivier) quanto a uma versão alternativa e inexistente de sua trajetória, em que a relação com a irmã amada não foi interrompida.
Aliás, o efeito produzido pela presença de Fernanda Montenegro nos momentos finais de “A Vida Invisível” é impressionante. Aïnouz sabe usar muito bem o rosto marcado e marcante dessa atriz mítica, parte constituinte da história do cinema brasileiro desde a década de 1960. Há um prazer indisfarçável da câmera em se aproximar dela, registrar suas expressões. O olhar de Montenegro, perdido e doído, diante da revelação feita nesse epílogo é o encerramento perfeito, adequadamente melancólico, para a história trágica de Eurídice e Guida.