O texto a seguir contém spoilers de Aftersun.
O primeiro longa-metragem de Charlotte Wells, aplaudido desde sua estreia na Semana Internacional da Crítica do Festival de Cannes, parece partir de um repertório já bastante difundido dentro do circuito de festivais e de dramas intimistas e de prestígio, o dos filmes que comunicam sua tensão principal pelas tangentes da cena, por ações e falas minúsculas que se amontoam até chegarem no limiar do óbvio. É um tipo de projeto propenso a alguns riscos, sendo o maior deles o do trabalho derivar para uma sutileza injustificada e auto satisfeita. O que faz com que Aftersun se destaque desse tipo de proposta é pela sua visão sobre como os dilemas adultos soam distantes e intangíveis para uma criança e também por ter um fundo emocional que lida precisamente com uma perda da inocência, com uma nostalgia pela simplicidade dos gestos.
No centro do filme está Sophie, talvez um alter-ego de Wells, que revisita as gravações de vídeo das férias que ela passou com o pai na Turquia quando ela tinha onze anos. Com essa premissa, ela rememora a figura do pai, Calum (encarnado por um Paul Mescal assombroso), um homem com muitos sofrimentos, grande parte deles ainda distantes da compreensão da pré-adolescente, mas não da mulher adulta.
Desde o início, há um mal-estar e uma melancolia que percorre quase todas as cenas, até as mais triviais, um sentimento de desalento e de algo que já não pode mais ser consolado. Vai se tornando cada vez mais claro que o pai já não está mais presente na vida da mulher adulta e que a viagem que os dois fizeram juntos foi a última vez em que eles se encontraram. Pelas memórias de Sophie daquele feriado, sabemos algumas coisas sobre Calum, que ele se tornou pai muito cedo dado que ele tinha trinta e poucos anos quando ele tirou férias com a filha, que o relacionamento com a mãe já estava encerrado há muito tempo e que ele tinha algumas dificuldades financeiras. Mescal encarna um homem que passa por uma dor emocional intensa relacionado à paternidade e ao que ele teve de abrir mão como consequência dela. Coisas essas que dão um contraste imenso entre a animosidade da garota, que começa a passar pelas descobertas da adolescência e da sexualidade, e pelo ar pesaroso do pai.
É na exploração desses contrastes, das distâncias entre o olhar pré-adolescente de Sophie e a opacidade dos dramas adultos, que Wells demonstra um rigor impressionante para com o plano. Em várias das imagens em que pai e filha são vistos juntos uma forte demarcação de fronteiras, com uma divisão clara do primeiro para o segundo plano das composições. Nessa demarcação visual e espacial também vemos um uso intenso de superfícies reflexivas que mesclam imagens diferentes em uma só composição. O que chama a atenção nessas operações estéticas é o quanto elas são orgânicas em relação à dinâmica das cenas, às posições dos sujeitos e dos objetos dentro de um espaço, à diegese propriamente.
Essa memória soa viva, palpável, e mesmo assim, com um tom que remete a alguma coisa de fora, uma inquietação que vem do adulto que é dono dela. É na distância entre a percepção da menina que está em vias de se tornar adolescente e a consciência trágica da mulher que precisa rememorar a infância, que dá o tom melancólico e fatalista desses momentos. A figura de Mescal assombra a tela como um fantasma até nos momentos em que ele abre um sorriso caloroso para a filha.
As motivações de Sophie ao relembrar esse feriado se tornam mais claras e visualmente concretas quando ela, já adulta, se imagina encontrando o pai em uma boate, com luzes estroboscópicas que picotam os movimentos dos corpos e oblitera a sensação de espaço. A figura do pai nesse contexto imaginário de Sophie é a expressão plena daquilo que ele parecia suprimir no feriado, seu aspecto trágico e autodestrutivo. Esse cenário lírico de reencontro, e também de confronto, aparece repetidas vezes ao longo do filme, intuindo-se que ele é parte integral desse processo subjetivo de rememoração. É uma situação mental que assume plenamente seu caráter como metáfora e que se destaca da naturalidade palpável do restante das cenas. São circunstâncias e operações poéticas bastante distintas, mas que se definem mutuamente com um efeito emocional vigoroso nos momentos finais do filme.
Wells parece suprir uma necessidade de resolução emocional com essa mescla de regimes estéticos, algo que consiste em percorrer as distâncias que são visíveis no filme inteiro, das percepções da infância e da consciência da maturidade (é até bem possível que o espectador estranhe algumas dessas decisões estilísticas, especialmente no último plano). Mas é importante salientar que o filme não cai em uma autossatisfação com as próprias sutilezas ou em um preciosismo técnico-formalista principalmente por causa desse senso de desalento e de desconsolo. No final das contas, a leitura semiótica e exaustiva dos gestos daquele feriado segue para a conclusão trágica e, por conseguinte, no desejo de um retorno à inocência.
A dor em Aftersun se torna incrivelmente potente justamente por seu aspecto inefável, indizível. Por ela ser insinuada para nós em momentos vibrantes e afetuosos que, mais tarde, serão tingidos por ela, sem solução simbólica que a mitigue.