Plano Aberto

A Ghost Story

Como disse Alfred Hitchcock em uma de duas conversas com François Truffaut, o cinema é fascinante por permitir que momentos extraordinários, que na vida real ocorrem em segundos, durem minutos (ou horas), e que momentos corriqueiros e não tão interessantes, que durariam horas, dias, se passem em segundos. A magia da elipse temporal é um dos predicados que tornam o cinema a expressão artística mais única e completa que o homem poderia ter inventado. A Ghost Story, o filme analisado neste texto, é um dos que, com carinho, trata da percepção humana do tempo, trazendo, por sutis pinceladas, reflexões sobre vida, dor e legado.

Não se deixe enganar pela simples premissa, que acompanha os desdobramentos da morte de C (Casey Affleck), acompanhando tanto o fantasma no qual o personagem se transforma quanto a namorada que ele deixa para trás, M (Rooney Mara). Muito distante de uma história de fantasma habitual, A Ghost Story passa rapidamente (mas poeticamente) pelo luto de Mara, até que, em sua segunda metade, torna-se uma jornada do fantasma atemporal de Affleck, trazendo o voyeurismo dos planos longos e ociosos como ferramenta narrativa, como em  2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick, e a desconstrução do tempo humano, como em Morangos Silvestres, de Bergman.

Acompanhando a assombração em que o protagonista se tornou, a obra adota uma narrativa “voyeur”, que traz Affleck perambulando principalmente pela casa onde morava. Sua fixação com seu lar nos permite acompanhar o luto da personagem de Mara, o que proporciona um dos mais intensos momentos da obra, quando a montagem alterna entre a moça ouvindo a mesma música no passado e no presente. Enquanto no passado a fotografia avermelhada e o som alto caracterizavam sua felicidade, no presente, a fotografia azulada e o som de pior qualidade (proporcionado por um fone de ouvido inferior em relação ao do flashback) mostram a tristeza que se instalou na vida de M.

Mas o foco da obra nem de longe é ser um estudo do luto, por mais que este surja, de forma natural e crua. A Ghost Story aos poucos torna-se um estudo do tempo, escolha possível graças à morte de C, que, ao tornar-se um fantasma, vê-se livre das amarras do tempo e do espaço. O personagem, que parece perambular pelo universo em diferentes eras, mostra-se um viajante do tempo, ganhando tons de melancolia por perceber que, por maiores que sejam seus feitos, seu destino é o pó. Implacável, o tempo vai triturar a mais bela das sinfonias ou o mais revolucionário dos discursos, e a ciência disso faz com que A Ghost Story torne-se um pedido para que seu público valorize o agora, sem preocupar-se com o legado.

A melancolia intrínseca ao discurso niilista da obra só funciona graças à fotografia, que mesmo quando utiliza a força do azul ou do vermelho para imprimir frieza ou conforto, o faz de maneira natural, sem que a imagem pareça artificial. Por manter uma fotografia naturalista aliada aos planos longos e contemplativos, que às vezes duram minutos e trazem sequer uma frase, A Ghost Story torna-se quase um experimento de observação da efemeridade da vida humana. Mas, em tal experimento, qual o papel do espectador que assiste?

Se nos é estabelecido que os fantasmas deslocam-se no tempo e no espaço a seu bel-prazer, e se nos lembrarmos de que, no início da projeção, é possível vislumbrar imagens do espaço sideral entre uma ou outra cena que trazem C e M em seu lar, A Ghost Story empurra a perspectiva do público não somente para o ponto de vista de C ou M, e sim para o próprio espectador, fazendo dele mais um fantasma. Chega a ganhar um tom de ironia compreender que o diretor dá uma volta tão grande para nos cutucar e pedir que esqueçamos a eternidade e vivamos o presente.

Ainda torna a experiência mais satisfatória constatar que, por sermos também um “fantasma” que assiste ao filme, a obra mantenha uma razão de aspecto (dimensão da tela em comprimento x largura) de 1.33:1 com bordas arredondadas, que emulam o ponto de vista de quem está sob o véu sobrenatural, com os dois buracos com cantos circulares no lugar dos olhos. Talvez o grande trunfo de A Ghost Story seja este: não nos colocar no papel do protagonista, mas no de uma figura similar a ele. Estamos, como C, perdidos no tempo e no espaço, à deriva, tentando encontrar sentido em uma vida efêmera e de fim inexorável.  A única liberdade que podemos contemplar, porém, é a de aceitar a puerícia da existência.

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