Criar um mundo verossímil, vivo e com o qual possamos, ao mesmo tempo, nos identificar nos aspectos socioculturais e perceber os saltos tecnológicos que nos separam é, muitas vezes, o grande desafio de obras de ficção científica. “Alita: Anjo de Combate” cria um universo que tem, sim, muitas similaridades com o nosso. O objetivo do diretor Robert Rodriguez, porém, é bem diferente do que poderia se esperar da sinopse (uma ciborgue projetada para o combate é encontrada e remontada por um tristonho cientista). Temos, em “Alita”, uma narrativa sobre pessoas movidas por sonhos e fracassos. A ação está lá – e é muito bem feita –, mas serve apenas de isca para um longa interessado na humanidade de seus personagens, sejam eles humanos ou não.
Um dos elementos basilares para a introdução da trama é a amnésia da protagonista. O fato de a própria Alita não lembrar-se de o que aconteceu em seu passado é utilizado de duas formas, a primeira é para criar, ao longo da trama, motivações para a personagem – ao encontrar uma situação que a ajude a resgatar suas memórias, Alita passa a constantemente tentar repetir essa situação –, a segunda é para cimentar o universo. Por não lembrar-se de nada, Alita se vê em dúvida quanto às regras e leis e moral daquele mundo, o que permite que os demais personagens tenham espaço para explicar a ela (e ao público, obviamente), tudo o que precisamos saber sobre a Cidade de Ferro ,onde a trama acontece, e sobre Zalem, a cidade flutuante que paira sobre os personagens e rege o mundo.
Essas duas cidades são os dois pilares que movimentam a trama. Tendo a Cidade de Ferro como o lar dos rejeitados e trabalhadores e Zalem como a área da nobreza, onde quem é de fora não tem acesso, “Alita: Anjo de Batalha” faz com que todos os seus personagens tenham alguma ligação com as regiões e a migração. Muitos dos personagens embarcam em uma vida de crimes para juntar dinheiro e começar uma vida nova, algo que parece ser um objetivo comum entre as classes menos abastadas. Um dos pontos interessantes é perceber como Rodriguez mantém-se fiel à perspetiva de sua protagonista, que só conhece o subúrbio, o que faz com que o público nunca tenha mais do que um leve vislumbre de como é o reino suspenso de Zalem. A visão do espectador é sempre presa à Cidade de Ferro e, quando tem qualquer sinal de Zalem, seja por meio de planos feitos de baixo, ressaltando como o reino inalcançável é, de certa forma, um paraíso impenetrável.
Observa-se também que, na obra, há o elemento pão e circo, utilizado para moldar os sonhos dos personagens. O esporte Motorball é não só o passatempo preferido dos habitantes da Cidade de Ferro, como também a única forma de chegar a Zalem (o campeão de cada temporada do torneio é mandado para a cidade flutuante). Cada um dos personagens tem uma relação diferente com o esporte: enquanto os mais jovens vêem como realização profissional, o vilão por trás do Motorball é um manipulador que, nas próprias palavras, se vê como alguém que escolheu reinar no inferno a obedecer no paraíso, e por isso manipula terceiros a fim de manter seu poder. Apesar da interessante relação entre o Motorball e os objetivos de cada indivíduo, é também pelo esporte que o filme revela algumas de suas maiores fragilidades. Se Dyson Ido tem uma trajetória de vida que o faz ter ojeriza ao esporte que custou sua estabilidade emocional, é totalmente incoerente que, de uma cena para a outra, ele passe a apoiar e ajudar Alita a competir na arena.
Com um roteiro cheio de conveniências – a personagem de Jennifer Connelly, por exemplo, está sempre no lugar certo na hora certa para resolver problemas, e parece flutuar sobre a narrativa sem muita objetividade –, o forte de “Alita” mesmo é, além das relações de seus personagens com a cidade, o visual criado para dar vida ao universo. A construção do mundo de “Alita” vai muito além do estilo à la “Blade Runner”; há detalhes que são escolhas importantes não só pelo enriquecimento visual, mas para aprofundar as personalidades dos personagens. Notamos, por exemplo, que o corpo de Alita foi criado originalmente para a falecida filha de Dyson Iso, o que dá muita profundidade a detalhes como o design da unha das mãos do corpo ciborgue, estabelecendo o nível de carinho com que Iso trabalhou no modelo.
Outro ponto positivo é a total ausência de pudor de Rodriguez ao conferir violência e intensidade às cenas de ação – que merecem muitos elogios por não abusarem dos cortes e câmeras tremidas e investirem na coreografia e no slow-motion para que a mise-en-scène seja estabelecida com coerência. Mutilações e assassinatos ocorrem constantemente, como é de costume em filmes de Rodriguez, e ajudam a estabelecer as regras do perigoso mundo onde Alita e seus amigos vivem. É um mundo abandonado por forças estatais, relegado apenas ao poder privado que, na ausência de regulação, utiliza os mais pobres praticamente como escravos. O fato de Rodriguez filmar a violência de forma crua, direta, e sem nunca buscar estabelecer espanto no semblante de seus personagens, faz com que a ideia de um mundo essencialmente violento, com brutalidade normatizada, seja construída com naturalidade.
Tendo a violência e um senso de perigo constante como algo básico para o universo criado, Rodriguez traz um time de protagonistas que nunca rejeita a violência, mas a utiliza como mecanismo de defesa. Se um personagem faz dela um meio para alcançar sua emancipação financeira (Hugo), o outro tenta, através da sanguinolência, corrigir os pecados do passado (Iso). Não há, portanto, um julgamento moral. Rodriguez cria um cenário no qual os personagens estão acostumados com as regras injustas do jogo e, por isso, passam a jogá-lo a fim de alcançar seus objetivos.
Tendo como ponto alto capacidade de amarrar as trajetórias de todos os personagens em uma jornada sobre sonhos e fracassos, “Alita: Anjo de Batalha” é um filme que, mesmo que pedestre em seu argumento, é eficiente na construção do universo e na forma como esse mundo se comporta. Robert Rodriguez apresenta um cenário interessante por saber posicionar todas as peças do jogo e tornar a possibilidade de uma revolução algo não só latente, como inevitável. Ao ter seus sonhos esmigalhados, resta aos personagens apenas a luta pela própria dignidade. Como é característico na filmografia de Rodriguez, essa luta não se dá por meio de discussões filosóficas ou tramas políticas, mas sim por uma violência honesta e sem vergonha. Um estilo de cinema falho, mas despretensioso e divertido.