Plano Aberto

Amanda

Ressignificar elementos visuais é algo desafiador para qualquer cineasta. Em “Amanda”, o francês Mikhaël Hers cria um filme sobre personagens que têm elementos basilares de sua vida destruídos e precisam, a partir dessa ruptura, buscar uma transformação, a fim de manterem-se de pé após vivenciar uma tragédia. Em outras palavras, temos em “Amanda” um núcleo de personagens que precisam ressignificar seu próprio mundo e motivações. É um filme de transformações, mas que também tem como essência dessas arrancar dessas transformações, o amadurecimento dos personagens.

Hers trabalha muito bem os espaços de seu filme. Os planos iniciais existem não só para ambientar a trama, que se passa em Paris, mas também para estabelecer a leveza da rotina dos protagonistas. O som da natureza, os planos fechados em árvores e a iluminação naturalista tornam a Paris de “Amanda” um cenário acolhedor. Porém, após a virada do fim do primeiro ato, há um novo simbolismo em cada enquadramento de “Amanda”. As imagens da dupla protagonista passeando pela cidade passam a ser pura melancolia. Os suaves arranjos visuais dos personagens se movimentando cedem lugar a longos planos abertos que destacam o vazio de uma cidade ferida.

As ruas de Paris que, em um primeiro momento, eram um cenário sereno, agora estão carregadas de dor. Movimentos de câmera que acompanhavam as bicicletas passam a revelar a herança de uma tragédia, como um aumento no policiamento das ruas. É a mesma cidade, mas em um contexto totalmente diferente. E o pior: os personagens não têm uma válvula de escape aparente. Se, em uma situação normal, um passeio no parque pode simbolizar uma forma de escapar da dor, na situação dos personagens de “Amanda”, é a rua e a cidade que estão feridos, sangrando constantemente e expondo, a cada esquina, suas cicatrizes. É um cenário de personagens que, a qualquer sinal de barulho, demonstram ainda estar impactados por uma memória sombria.

O roteiro de Hers e Maud Ameline faz uma escolha acertada ao só permitir que seus personagens tenham a possibilidade de fazer novas reflexões em um novo cenário – no caso, Londres –, como se, para conceber o que aconteceu em seu lar, David e Amanda precisassem ir para longe e observar suas situações com um novo olhar. Igualmente interessante é o fato de o roteiro fugir de qualquer contextualização política que poderia ser desenvolvida a partir do primeiro ato. O objetivo de “Amanda” é falar sobre os sentimentos das pessoas; suas reações, temores e transformações. O elemento que causa essa ruptura na rotina parisiense pode, sim, ser analisado de forma política mas, no filme, ele é apenas um recurso narrativo.

Voltando aos espaços, é elogiável também como Hers os aproveita para trazer personagens que estão sempre em movimento: estão caminhando ou pedalando. Esse deslocamento ocorre de duas maneiras. Antes da tragédia que muda o rumo da trama, os passeios de David, Amanda e cia. por Paris parecem apenas um exercício de socialização; posteriormente, é como se os personagens buscassem extrair das ruas de Paris alguma resposta, pois ainda são incapazes de conceber o choque que alterou suas vidas. São caminhadas tortuosas, que, pelo já mencionado estilo de composição do quadro, destacam o vazio e expõem a inexistência de qualquer resposta para as reflexões feitas.

É belo ainda que Hers consiga construir, na relação de David e Amanda, o sentimento de renascimento para ambos os personagens. Marcados pela tragédia, ambos vêem no relacionamento de um com o outro a chance de aprender, amadurecer e recomeçar. “Amanda” é um filme que mostra como a transformação negativa na relação entre pessoas e espaços abre caminho para que as relações entre as próprias pessoas sejam ressignificadas. Ao fim da projeção, fica o alento de perceber como Amanda e David souberam conceber e absorver a dor para, então, finalmente, voltar a viver.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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