Antena da Raça

Antena da Raça

Transe lúcido

Wallace Andrioli - 17 de outubro de 2020

São bastante conhecidas as cenas de Glauber Rocha no Festival de Veneza, em 1980, liderando uma passeata contra a premiação de Louis Malle e John Cassavetes pelo júri, furioso pelo não reconhecimento daquele que seria seu último filme, A Idade da Terra. Também circulam com considerável frequência imagens cronologicamente próximas às primeiras, do programa Abertura, que Glauber apresentou na TV Tupi. O que elas têm em comum é essa presença de um artista verborrágico, inquieto, de raciocínio aparentemente caótico.

Antena da Raça, de Paloma Rocha (filha mais velha de Glauber) e Luís Abramo, parte justamente do Abertura para pensar o lugar do pensamento glauberiano no Brasil atual. É um movimento arriscado, na medida em que o filme sobrepõe momentos do programa televisivo a trechos de filmes do diretor e cenas filmadas em 2018, que vão desde conversas com figuras próximas a Glauber (José Celso Martinez Corrêa, Caetano Veloso e Helena Ignez, por exemplo) a outras com pessoas desconhecidas, da periferia do Rio de Janeiro e de Brasília, passando ainda por uma breve leitura encenada de um texto do realizador.

As emulações do Abertura não são muito exitosas, é difícil se equiparar à energia cênica do cineasta baiano. Das entrevistas, a que funciona melhor é a de José Celso, que tem mais tempo para desenvolver argumentos próprios sobre a arte brasileira em consonância com o que pensava Glauber – afinal, a encenação de O Rei da Vela do primeiro e Terra em Transe (1967), do segundo, estão na gênese do tropicalismo e de toda uma revisão da cultura do país no final dos anos 1960. É mesmo no encontro das imagens de autoria do diretor que Antena da Raça ganha vida. Sequer eram necessárias as analogias explícitas com o Brasil de hoje para que cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe, O Leão de Sete Cabeças (1970), Câncer (1972) e A Idade da Terra (1980), além, claro, do Abertura, façam sentido no presente.

Emerge daí um artista capaz de pensar o Brasil com palavras e imagens, para além de modelos explicativos europeus previamente estabelecidos. Pensamento pulsante, criativo, nada acomodado e, ao contrário das impressões superficiais, coerente. Glauber é muito preciso no diagnóstico dos problemas do país, de como eles se estabeleceram historicamente, e do que entende como possíveis soluções. Mesmo que suas falas eventualmente soem utópicas e pouco concretas, elas estão sempre organizadas em torno de alguns princípios, presentes também nos filmes que dirigiu: anticolonialismo e anti-imperialismo; necessidade de romper com a postura paternalista dos intelectuais de classe média em relação ao povo brasileiro; e defesa das reformas estruturais como medida básica para a produção de alguma transformação no país. O transe de Glauber é, portanto, sempre lúcido.

Com relação à organização da narrativa, Antena da Raça sobrevive aos riscos que assume. Ao menos Paloma Rocha e Luís Abramo buscam um contato mais efetivo com a sensibilidade estética de seu protagonista, escapando de um formato biográfico mais convencional, sempre à espreita no documentário brasileiro. O próprio Glauber, aliás, já ganhou um filme do tipo, pelas mãos de Silvio Tendler.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a edição de 2020 do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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