Ao Cair da Noite é o clássico caso do filme em que o espectador desatento sairá da sessão incomodado, aguardando respostas que o terceiro ato não se propõe a entregar. Tais respostas estão lá, durante toda a projeção, desde as primeiras cenas do longa, mas nunca cuspidas de forma óbvia para o público. A obra parte de um roteiro econômico e preciso para construir seu mote nos diálogos corriqueiros, através de passagens que aparentam não ter grande importância, mas que, ao fim da projeção, significam tudo. Antes de prosseguir com o texto, sugiro que se retorne aqui só após assistir ao filme, assim como sugiro que se vá sem ter nenhuma noção do que se trata, evitando até o trailer. O texto não conterá spoilers, claro, mas a experiência proporcionada por Ao Cair da Noite merece uma exibição “às escuras”.
Em um período indeterminado, a humanidade parece ter entrado em colapso, destruída por uma doença que muito se assemelha à peste bubônica. Resta aos sobreviventes, então, achar abrigo onde conseguirem, lutar pela sobrevivência e permanecerem livres da praga. No meio disso está a família composta pelo casal Paul (Joel Edgerton) e Sarah (Carmen Ejogo) e seu filho de dezessete anos, Travis (Kelvin Harrison Jr). O trio vive sob constante medo, tanto da chegada de invasores quanto da possível contaminação de um dos três. A situação deles ganha ainda mais tensão com a chegada de um forasteiro, Will, que tenta ganhar a confiança da família.
A direção do jovem Trey Edward Shults é um espetáculo à parte. Também responsável pelo roteiro, o cineasta realiza escolhas que prontamente o colocam acima da massa pouco pensante das recentes gerações de autores de cinema: utiliza o texto apenas como um guia para contar sua história por áudio e visual. Um belo exemplo disso é a cena em que Will tenta convencer Paul, o protagonista, a confiar nele: Will está amarrado a uma árvore e é interrogado por Paul, que não confia muito no invasor. A câmera utiliza a clássica construção de plano e contra-plano até que Will menciona sua esposa e filho, fazendo com que o protagonista se identifique com suas dores familiares. A partir daí, a cena não tem mais cortes, e a câmera gira ao redor do rosto do protagonista enquanto ele ouve o sujeito, deixando de filmá-lo pela direita e passando a filmá-lo de perfil pela esquerda (assim como ao estranho que ele interroga), inserindo os dois na mesma perspectiva. A identificação entre eles por meio de questões familiares comuns não é construída por falas, mas pela condução dos planos: ao vermos a cena abrir com Paul e Will opostos e fechar com os dois do mesmo lado, percebemos que houve identificação.
Toda a narrativa de Ao Cair da Noite é estabelecida com a sutileza de cenas como essa. A alusão à peste bubônica, por exemplo, se faz presente em dois momentos muito sucintos: quando um grande quadro mostrando a humanidade medieval combatendo caveiras é mostrado por alguns segundos e quando Travis desenha uma floresta ocupada por esqueletos. Unindo essas duas passagens às profissões de Paul e Will, os dois líderes do filme, é fácil compreender o caminho que o longa trilha. Paul, o protagonista, é um ex-professor de história ao passo que Will já exerceu diversos trabalhos de “construção”, como mecânico e assistente de obras; portanto, um conhece a história da humanidade, e outro, supostamente, pode proteger a casa e elaborar armadilhas/bugigangas/sistemas de defesa. Mesmo com todo esse preparo, porém, os personagens permanecem vulneráveis diante de um inimigo invisível.
O filme se passa nos anos 2000, mas seu enredo poderia facilmente ser transportado para qualquer outro período da história. É como se Shults nos dissesse que basta uma simples crise, uma simples ausência de eletricidade ou água potável, para que nossa espécie seja jogada de volta à pré-história, algo que é muito perceptível ao lembrarmos de diálogos como “não podemos confiar neles, sabemos como os humanos se comportam quando estão em desespero”. Ao Cair da Noite revela-se, então, muito mais do que um suspense/horror que o marketing pode sugerir, mas uma análise da fragilidade humana diante de forças muito além de nosso controle, como as da natureza.
E, se o objetivo do isolamento na floresta é nos jogar de volta à pré-história, é perfeita o trabalho do compositor Brian McOmber: nos momentos mais importantes da trama, a trilha calca-se na percussão para desenhar o som com um tom tribal, ritualístico e instintivo às atitudes dos personagens. Essa estética fortalece a ideia de que todos os retratados abandonam muitos dos conceitos baseados na moral socrática e judaico-cristã que guia a sociedade ocidental nos últimos milênios. Também contribui para a narrativa a brilhante fotografia de Drew Daniels, que mantém a sombra engolindo os personagens e cenários por toda a metragem do filme, escolha que pode ser interpretada como a ignorância que predomina (já que desde o mito da caverna de Platão a luz é vista como conhecimento), e que, de quebra, ajuda a dar o tom nefasto e amedrontador do longa.
E, se a forte presença da sombra representa a ignorância humana, é coerente com a trama a suposição de que, incapaz de controlar o próprio destino, Paul ceda à paranoia. Mesmo recebendo todos os sinais possíveis de que Will é uma pessoa confiável, o protagonista mantém uma incredulidade que inevitavelmente prejudicará o relacionamento deles. É difícil não esperar que Paul, cercado pelo desconhecido, aja guiado pelo medo, e que tais momentos sejam retratados com câmeras subjetivas que trazem o ponto de vista de seu filho, Travis, câmeras essas que estão trêmulas, sem eixo regular, nos mostrando a insanidade e descontrole mental que dominam o protagonista. O que vem à noite (tradução literal de “It Comes At Night”) não é nenhum monstro sobrenatural, mas a ignorância que nos leva ao medo e à violência.
Muito além dos gêneros por onde passeia (o filme possui um forte clima de terror psicológico e suspense), Ao Cair da Noite revela-se um estudo de nossa espécie, capaz de mostrar como cedemos ao nosso lado primitivo a qualquer sinal de desordem. Ao final da projeção, o que constatamos é que nossa civilidade é questionável, é frágil, é uma máscara, e a brutalidade e a irracionalidade são uma porta (aqui representada pelo vermelho, a cor perfeita por remeter à violência) para nossa face mais sombria. Nossa ciência de que há forças inexoráveis que simplesmente trucidarão nossos planos e esforços é o que torna nossa existência tão melancólica. E ver isso num filme que é tecnicamente criativo e narrativamente exuberante é fantástico.