Quando se fala em cineastas fetichistas, Zack Snyder sempre é um dos mais citados. Desde sua fetichização dos corpos dos guerreiros em 300, passando pela violência em Watchmen e, mais recentemente, o Deus entre nós do Super-Homem nos filmes da DC. Os três casos, vale lembrar, não são obras vindas da mente do polêmico autor, mas adaptações de quadrinhos com décadas de história. Army of the Dead: Invasão em Las Vegas é, quem diria, um dos primeiros (se não o primeiro) filmes realmente oriundos das puras ideias do diretor outrora visto como visionário, hoje um pouco desgastado na indústria.
Aos que querem caçar a fetichização em Army of the Dead, até podem encontrar, mas a defesa da tese vai exigir um grande esforço argumentativo. O protagonista é vivido por Dave Bautista, um dos maiores brutamontes de Hollywood na atualidade. Mas Snyder vai até na contramão dessa concepção e tenta mostrar que pode algo além de slow-motion e composições bonitas com um tanque de 2 metros surrando inimigos. Por mais que não ache que Army está próximo de seus dois grandes filmes (Madrugada dos Mortos e BvS), ainda é de se valorizar vermos um diretor com quase vinte anos de carreira tentar algo novo, principalmente quando se fala de um cineasta que sempre operou (e provavelmente sempre operará) dentro do universo e da lógica dos grandes blockbusters.
Snyder parece muito mais interessado no que as cenas significam no contexto sociopolítico da trama do que em criar grandes sequências, que é o que marca sua carreira (mesmo que nem sempre seja bem sucedido). A premissa que possibilita isso é bem simples: um grupo de pessoas descartáveis aos olhos do capital (mesmo que cada um tenha um conjunto de habilidades respeitável) é contratada por um bilionário para resgatar uma bolada em um hotel. O problema? O hotel fica em Las Vegas, cidade tomada por zumbis após um acidente militar. Agora, com apenas três dias para executar o plano, já que o governo vai mandar a cidade pelos ares, o grupo arrisca sua vida em uma missão suicida em busca de voltar com o dinheiro e alguma dignidade.
Temas sociopolíticos não são novidade no cinema do diretor, mas constantemente acabam sendo subdesenvolvidos ou sufocados justamente pelo interesse maior na pancadaria. Aqui, Snyder parece ter anseios tão diferentes em relação à maior parte de sua obra, que até mesmo sua forma parece um pouco desleixada. A própria ambientação de Las Vegas, por exemplo, é um pouco subaproveitada e parece um espaço de guerra genérico. É claro que isso ocorre também porque Invasão em Las Vegas quer que os “campos de concentração” onde alguns humanos vivem sejam o único lugar palpável, mas o resultado é que tanto o cenário lúdico e embusteiro de Vegas é pouco aproveitando, quanto o mundo real além dos muros que cercam a cidade também não passam muita credibilidade pela maneira distante e fria como são filmados.
Não ajuda tanto o fato de Invasão em Las Vegas precisar parar diversas vezes para desenvolver sua trama, o que torna a narrativa um pouco truncada. Nada que comprometa a experiência, mas que evidencia como, mesmo mais à vontade, o cineasta ainda possui alguma dificuldade em alinhar sua forma de contar história com o formato cinematográfico. As tramas dos filmes de Snyder sempre se desenvolvem bem melhor pela ação (não o gênero, mas os acontecimentos, os movimentos dramáticos), e não quando precisam de diálogos para explorar as tensões humanas ou situar dramaticamente cada núcleo.
Voltando aos personagens, é bem curioso como o diretor não esconde como cada um se enxerga na trama. Scott Ward (Bautista) deveria ser um herói por seu passado, mas trabalha fritando hambúrguer em uma lanchonete de quinta categoria. O personagem sabe que sua condição (“sei que não deveria estar fritando hambúrguer no Lucky Boy”, diz, em dado momento) é injusta, bem como o bilionário que o contrata para liderar a missão suicida também sabe disso. O que Bautista descobre (mesmo que não verbalize), é que está sendo tratado como um mero veículo para algo maior e que sua vida não tem valor nenhum nesse mundo. Não por acaso, o objetivo do vilão nunca foi de fato recuperar a grana, mas conseguir um item que, para ele, representa poder e muito mais dinheiro. Army of the Dead, então, trabalha justamente sobre essas tensões. O ricão que assiste ao fim do mundo confortavelmente de sua cobertura, tomando uísque e esperando uma notificação no iPhone, enquanto seus contratados matam e morrem para cumprir uma missão ingrata. Um dos membros da missão, inclusive, diz estar disposto a morrer para conquistar o que equivale a 1% da quantia total, que para o vilão, pouco importa.
O terror do mundo de Army não é o apocalipse zumbi, mas a constatação de que a própria humanidade perdeu sua sensibilidade ao ponto de não reconhecer o que nos torna humanos. Aliás, seria até injusto resumir os zumbis de Army of the Dead a corpos sem vida que caminham. Afinal, no filme, os seres possuem sentimentos e até organização social. A escolha não é mero acaso ou vontade de soar diferentinho. Se vale a máxima que todo filme de zumbi fala, em última análise, sobre a própria humanidade, Army of the Dead entendeu perfeitamente o conceito: os últimos resquícios de humanidade do filme existem na sociedade dos mortos-vivos, não na nossa.
Retomando a fetichização, então, Army é justamente o contraponto da carreira de Snyder nesse sentido. Mesmo quando alguém da equipe é atacado ou devorado, o diretor escolhe dar uma morte digna e distante em vez de fechar a câmera no rosto sofrido da vítima. A exceção é justamente o traidor, devorado por um tigre-zumbi, que tem o fim mais grotesco. Se alguns poderiam imaginar um filme de Snyder apenas usando os zumbis como justificativa para um esquadrão suicida fuzilando corpos, o resultado não poderia estar mais longe disso. Mais maduro e livre do que em tempos e projetos passados, o cineasta aqui retrata um conflito político clássico sobre o que nos torna humanos e qual nosso valor na sociedade capitalista. Army of the Dead é menos Zack Snyder fetichizando sua estética e mais criticando a fetichização do americano por poder e subjugação de outros povos.
De qualquer forma, o cineasta parece bem confortável trabalhando com mortos. Ao lado de Madrugada, Invasão em Las Vegas talvez seja o filme em que o diretor parece mais à vontade para fazer o que quer. Talvez justamente por não gostar muito de como o mundo dos vivos funciona, Snyder pareça engajado em criar novos mundos e, de preferência, cheio de zumbis. Se é assim que Zack Snyder se sente livre, que venham mais mortos-vivos.