A maneira como As linhas da Minha Mão se estrutura ao acompanhar Viviane Ferreira por uma série de monólogos sobre a vida, em longuíssimos planos-sequências, pode levar a uma tentação imediata de não querer se debruçar sobre o filme em si, pois até esquecemos que ele é isso, uma vez que somos sugados para dentro dessa pessoa fascinante e de difícil descrição. Por mais que Viviane Ferreira seja a alma do projeto, é importante também colocar em evidência a função do aparato cinematográfico que media sua presença, ainda que boa parte do tempo ele seja invisível. Não se nega aqui uma perspectiva materialista, mas que ela só existe por meio de uma relação dialética entre a câmera e atriz, na qual ela se oferece como energia fluida dentro de um espaço-tempo definido, fomentando um belíssimo encontro entre o Cinema e a Vida.
De um lado, com as falas de Viviane, é possível aprender a enxergar uma perspectiva artística e sensível do ato de existir e estar diante do mundo. Só que do outro lado, como praticamente nunca vemos algo além da imagem da própria Viviane, é como se essa sensibilidade se voltasse para uma própria observação apurada de sua presença. Ou seja, se Viviane nos faz imaginar pela sua fala a magia singular de uma aventura na Itália quando fumou com um albanês sob a lua cheia e depois fez amor em um trem (pouco importa se é verdade ou não), quem assiste esse relato precisa aprender a enxergar a reminiscência daquela aventura manifestada em seu corpo, dos olhos ao seu sorriso. Eis o processo de retroalimentação de As Linhas da Minha Mão, pois da mesma maneira que Viviane vê o mundo como uma grande energia fluida e permeada por floreios artísticos, melancólicos e românticos, ao mesmo tempo nós passamos a enxergá-la com maior sensibilidade. Mais do que uma mera presença física diante da câmera, trata-se de uma janela para uma alma que aos poucos se permite revelar e viajar por suas complexidades.
Em um certo momento de suas falas, Viviane diz que faz 500 conexões por minuto e é assim que o ritmo é ditado por ela ao longo de As Linhas da Minha Mão, com João Dumans respeitando a integralidade do processo de exposição de pensamento de sua atriz-estrela. Aqui, a espontaneidade possui mais importância do que qualquer interferência técnica em prol de uma fluidez ou objetividade, que poderiam ser alcançadas por cortes no meio ou maior direcionamento, mas que são deixadas de lado. O diretor nos convida para mergulhar no fluxo de consciência caótico dela que, ao invés de seguir uma linha, se permite se perder na estrada e depois se achar novamente — tudo isso dentro do tempo de fumar um cigarro. Até por isso, logo após um monólogo da protagonista pelas ruas da cidade, quando Dumans a abandona para filmar por alguns minutos um homem tocando uma gaita por perto, o que está acontecendo é que, tal como os relatos de Viviane, o diretor lançou um olhar para a arte dos pequenos detalhes do mundo, como se estivesse aprendendo com sua própria protagonista.
A integralidade dos relatos é importante na medida que também é um ganho de autonomia da própria Viviane, quase como se Dumans compartilhasse o controle autoral do filme com ela. Com o assunto da bipolaridade vindo à tona por meio dos monólogos e consequentemente a importância de ter o controle sobre sua própria vida, quando Dumans permite que ela praticamente se dirija, há aqui um generoso gesto de confiança para uma autodeterminação por parte daquela mulher. Ao ceder o espaço-tempo sem cortes para que ela conte suas histórias, é permitido que o seu caos tente ser arrumado internamente, revelando um processo frontal de exposição de vulnerabilidades. Ao ter o pleno domínio da oralidade no seu próprio tempo subjetivo, é como se houvesse nessa autoanálise (que vai do riso ao choro em questões de segundos) um poder de controlar a si mesmo pelo próprio gesto de exorcizar palavras. Dentro daquele recorte, Viviane é uma energia maleável em constante fluxo que está em constante embate até o momento do corte, no qual suas palavras são infinitas possibilidades de direções.
Assim, o espectador entra nesta relação até então dual, que se torna triangular, ao passar a apreciar a beleza nas próprias particularidades de Viviane, como uma simples pausa que ela pede para respirar ou quando ela decide cantar espontaneamente. Isso tudo desemboca em um jogo imaginativo estimulado pela oralidade dos relatos de Viviane sobre peculiares histórias de vida. Inclusive, quando o espectador já parece conhecer o suficiente da protagonista, Dumans faz uma interessante escolha de mostrar uma noite com Viviane no centro da cidade por meio de fotos estáticas, o que acaba sendo um estímulo para a imaginação do que foi aquela aventura noturna com ela.
Em que pese um contexto pandêmico no qual o filme foi gravado, As Linhas da Minha Mão é paradoxalmente um filme centrado em uma única pessoa, mas que se abre para todo um mundo de experiências que está fora dele e pode ser sentido através de sua presença. Por meio de um movimento sinestésico, os oitenta minutos passados observando essa personagem são uma oportunidade de voltar a enxergar e principalmente de ouvir o outro, se abrindo novamente para um contato mais íntimo e profundo com a humanidade. Nas cenas de Viviane gravadas na rua, ainda que Dumans nunca abra um plano geral e não interesse ao filme se desgarrar dessa personagem, quando vemos vultos de pessoas passando ao fundo, há um valioso lembrete aí de que, no meio da cidade e sua infinidade de pessoas, aquela mulher que nós estamos acompanhando tão complexamente ao longo daqueles minutos na verdade é invisível para todo o resto no meio do fluxo do mundo, sendo só mais uma pessoa que cruzamos e nunca teremos ideia da riqueza que ela carrega. No fim, o Cinema possui esse poder de revelar seres humanos incríveis escondidos.
*Filme visto na Mostra Aurora, dentro da Mostra de Tiradentes 2023, como parte da cobertura in loco do festival. Acompanhe nossa cobertura completa aqui.