Hercule Poirot, o lendário detetive belga, embarca às pressas no Expresso Oriente, trem que cruza a Europa conectando grandes cidades do velho continente, como Londres e Istambul. Na segunda manhã da viagem, o poderoso empresário Ratchett é encontrado morto em seus aposentos. O responsável pelo expresso, então, elege Poirot para investigar o assassinato e interrogar os demais passageiros. Baseado em romance homônimo de Agatha Christie, Assassinato no Expresso do Oriente é um suspense policial que acompanha o desenrolar dessas investigações, utilizando tanto os princípios do protagonista quanto as possíveis motivações dos suspeitos para construir sua narrativa.
Diferente da mais célebre adaptação da obra literária, que é o longa de 1974 dirigido por Sidney Lumet, o Assassinato no Expresso do Oriente de 2017 ganha uma abordagem mais focada no protagonista de Kenneth Branagh (além de dirigir, Branagh interpreta Poirot). O diretor responsável por Hamlet e Frankenstein de Mary Shelley escolhe centrar sua narrativa não no caso da criança sequestrada e assassinada, que é a introdução da trama do filme de Lumet, mas em como Poirot reage aos acontecimentos do trem e como lida seus valores diante de situações que exigem flexibilidade moral. Vemos Poirot resolvendo um caso ao mesmo tempo que, por meio de seus diálogos e atitudes, compreendemos sua eterna busca por equilíbrio – a fixação por ovos de simetria perfeita, a cena na qual pisa duas vezes no monte de estrume para ter ambos os pés sujos e sua insistência por corrigir as gravatas de seus colegas são alguns dos elementos do roteiro para caracterizar tal busca, que mais tarde será base para sua conclusão sobre o assassinato.
Pelo fato de a obra ser ambientada quase inteiramente dentro do trem, Assassinato no Expresso do Oriente poderia encontrar problemas para lidar com a questão espacial, isto é, a limitação de planos, o deslocamento de personagens e o uso dos cenários. Branagh, porém, tira as dificuldades de letra, mesmo que fazendo escolhas parecidas com as de Lumet. Apostando na força de seus atores (o elenco conta com nomes de peso como Judi Dench, Willem Dafoe, Michelle Pfeiffer e Penélope Cruz), o diretor norte-irlandês utiliza muitos planos fechados nos rostos dos personagens, permitindo que o público, assim como faz o protagonista, tire suas próprias conclusões sobre a veracidade dos depoimentos dados. É digno de nota ainda como Branagh utiliza planos longos que acompanham os personagens caminhando pelos vagões do trem, permitindo que os seus movimentos envolvam a câmera e, consequentemente, o espectador.
Há, porém, algumas escolhas questionáveis na concepção visual da obra. A manutenção de tons chamativos de azul e vermelho é interessante quando dentro do trem, mas a artificialidade das paisagens externas, construídas por computação gráfica, incomodam tanto pela má qualidade do efeito quanto pela falta de necessidade. Em vez de termos cenários bonitos e imponentes, temos uma desfiguração do fundo dos planos que dá até um tom teatral à obra, que nitidamente não utiliza cenários reais e nem os emula de forma realista. Em contrapartida, dentro do trem, a reconstrução da aura da década de 30 é feita com capricho.
Outro favor que prejudica um pouco o desenrolar da trama é as escolhas da montagem. Não só pela clara existência de barrigas, em cenas que pouco acrescentam e por muito tempo se prolongam, mas também pela inserção das cenas de flashback que, em muitos casos, servem apenas para visualizarmos passagens que já conhecemos por relatos. Há ainda um mau aproveitamento dos personagens, como o Conde, que tem importância na trama, mas surge de forma dispersa, apenas quando sua presença é essencial. Com um elenco tão grande, era necessário que todos os passageiros fossem mais bem administrados, já que a intenção do roteiro era trabalhar os dramas de cada um e criar um senso de união entre eles.
A mencionada escolha de abrir a projeção introduzindo o personagem, e não o conflito, mostra-se influente para o impacto dramático da obra. Em vez de no ato inicial termos uma noção do assunto que conduzirá os acontecimentos da obra, conhecemos apenas a personalidade de seu protagonista, o que, por um lado, permite que sintamos mais empatia por Poirot, por outro, enfraquece a relação do caso do sequestro de Daisy Armstrong com a atmosfera do trem. Enquanto a versão de Lumet visa ser um suspense no qual temos ideia da resolução, mas precisamos amarrar as ponta soltas, a de Branagh almeja jogar o espectador no ponto de vista de Poirot e fazer com que, junto ao protagonista, montemos o quebra-cabeças.
Um elemento elogiável de Assassinato é a forma como o longa consegue exprimir a verdade de cada depoimento ou confissão. O talento dos atores se sobressai, mas eles só conseguem brilhar graças às inteligentes escolhas técnicas da obra, como quando a câmera lentamente se aproxima do rosto de um personagem enquanto ele exibe sua verdadeira face pela primeira vez. Aqui, a diminuição da iluminação, que ofusca o cenário e destaca apenas o rosto do personagem, permite que sintamos o sutil surgimento da verdade existente nas palavras proferidas. Com isso, manifesta-se ainda um fator novo na obra: a criação de empatia pelos possíveis assassinos.
Assassinato no Expresso do Oriente humaniza cada um dos seus suspeitos e evita fazer uma análise moral de suas escolhas. É, todo o tempo, uma obra que fala sobre um detetive que busca o equilíbrio em sua análise da situação, mas que acaba menosprezando a importância do aprofundamento dos personagens – alguns só ganham camadas quando têm seus passados trazidos à tona por flashbacks. Com isso, desperdiça-se não só o potencial de vários dos passageiros do trem, criando um distanciamento que não há, por exemplo, na versão de 1974. O único personagem que consegue criar empatia junto ao público é justamente o protagonista.
Assassinato no Expresso do Oriente escolhe focar em Poirot, com a clara intenção de criar uma saga enquanto a história pede a gritos, a todo momento, que todo o elenco seja aproveitado – o que só acontece quando o próprio Poirot aciona gatilhos dos personagens. Funciona pela boa atuação de Branagh (que abraça a caricatura de seu personagem sem nunca abandonar a força de gestos mais simples, como um olhar fixo ou modulação na voz), e pela organicidade com que roteiro e direção desenham suas investigações (os elementos que o protagonista usa para resolver situações são sempre inseridos ou destacados antes de ele os utilizar). Expresso é um filme eficiente, mas quase tão frio quanto a avalanche que atinge o trem.