Assassinos da Lua das Flores

Assassinos da Lua das Flores

Filme-reportagem

Wallace Andrioli - 17 de outubro de 2023

O texto a seguir pode conter spoilers de Assassinos da Lua das Flores

Martin Scorsese segue desacelerando. Se O Irlandês (2019) foi o retorno do diretor ao tão habitual universo da máfia numa abordagem mais lenta e parcimoniosa, marcada sobretudo por um número menor de cortes e uma câmera bem menos inquieta que em outros tempos, Assassinos da Lua das Flores faz algo semelhante direcionado a narrativas que buscam mergulhar nas entranhas da sociedade americana, expondo em detalhes passados não tão distantes, caóticos e plenos de violência e preconceitos. Como Gangues de Nova York (2002). Só que aqui não há o histrionismo do épico desconstrucionista que trouxe Scorsese para o século XXI: Assassinos da Lua das Flores é um filme silencioso, lento (ainda que não arrastado), sem nenhuma pressa para contar sua história intrincada e com pouquíssima propensão à grandiosidade dramática.

Trata-se da adaptação do livro-reportagem homônimo de David Grann e está aí uma das chaves para entender o caminho seguido por Scorsese. O tom de Assassinos da Lua das Flores, o filme, é de relato, de reportagem no melhor sentido do termo, de apresentação crítica e sem sensacionalismo de uma sucessão de fatos e personagens que compõem uma história escabrosa, mas que de sui generis só tem a imensa riqueza obtida com exploração de petróleo pelos indígenas Osage e a conseqüente sujeição financeira a eles de homens e mulheres brancos. Toda a violência que se segue contra esse povo nativo é a regra da história americana.

Scorsese acredita no poder do relato, na indignação como resultado da apresentação bem articulada e relativamente distanciada de ações indignantes, ao invés de uma denúncia estridente, que acentuasse, por meio de elementos formais, as atrocidades cometidas contra os Osage. E ele está certo, ao menos nesse caso específico. O final estupendo coroa a força dessa escolha ao explicitar a forma fílmica na própria diegese: ao invés dos tradicionais e geralmente aborrecidos letreiros informativos de encerramento, surge em cena um programa de rádio que noticia, dramatizando, os desdobramentos legais e pessoais da história contada até ali. Nenhum texto sobre tela preta acompanhado de fotografias das pessoas reais teria a mesma força da presença do próprio Scorsese lendo, num tom sereno e melancólico, as informações sobre os últimos anos de vida de Mollie Burkhart (Lily Gladstone).

Menos é mais também nas atuações, sobretudo do trio Gladstone, Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, o coração dramático de Assassinos da Lua das Flores. Os três têm nas mãos personagens bastante complexos e que tenderiam a resultar em presenças grandiloquentes, mas a aposta aqui é, mais uma vez, em composições discretas que, para os dois últimos, ressaltam o ridículo de homens ambiciosos e medíocres, ainda que também perigosos; e, para a primeira, atribui uma aura de certo mistério e inacessibilidade. DiCaprio é o maior destaque, por como consegue fazer de Ernest Burkhart um homem ao mesmo tempo desprezível e digno de pena, sujeito fraco e manipulável que comete atrocidades, mas em algum lugar de si guarda amor pela mulher com quem se casou. No entanto, e nisso o filme é primoroso em demonstrar, amor que não é transformado em ação, ao menos para impedir danos à pessoa amada, não tem real valor. Essa é a tragédia desse personagem.

Todos esses elementos (atuações minimalistas, estilo discreto, ritmo desacelerado), além da recorrente atenção meticulosa de Scorsese para os detalhes na reconstituição de momentos históricos, propiciam uma imersão realista suave naquele mundo. O diretor não busca conquistar a adesão espectatorial através do deslumbramento, da escala épica que, ao impressionar, convence da fidedignidade da reconstrução do passado. Tampouco faz uso de uma mise-en-scène rebuscada, que chame demasiada atenção para si, mesmo numa perspectiva minimalista. Ele estabelece um mundo crível do maior ao menor nível, com personagens e relações críveis, e a partir daí faz fluir pacientemente a narrativa sem grandes solavancos, por longas, mas nunca entediantes, três horas e meia.

Nesse sentido, o final, outra vez ele, tem um impacto particular: o referido programa de rádio desliza do diegético ao extra-diegético, quebrando a fruição realista de forma também suave, já que a história não é bruscamente interrompida por algum texto explicativo; ao mesmo tempo, a artificialidade visível da dramatização radiofônica, consequência da presença de uma câmera mostrando como ela era produzida, contrasta com o primoroso efeito de realismo obtido até ali, por meio de artifícios de encenação que são essencialmente cinematográficos; finalmente, o último plano, enquadramento zenital de uma celebração Osage hoje, está já totalmente fora da diegese, mas sua composição visual e sonora, que não registra rostos ou palavras e constrói uma imagem da coletividade acompanhada de cantos e batuques, ressalta a relação ambígua entre vida e ficção, pois aqui a passagem de uma à outra é quase imperceptível. O que só torna Assassinos da Lua das Flores um filme mais angustiante e doloroso.

Topo ▲