O primeiro filme protagonizado por uma super-vilã da DC Comics ocupa um lugar curioso no cenário do cinema de quadrinhos. Ao passo que Cathy Yan conta a história de uma personagem que busca encontrar sua própria voz ao se libertar de um relacionamento abusivo, o filme também parece habitar uma zona cinzenta para além do conteúdo: em sua forma. “Aves de Rapina” ensaia um anarquismo que se popularizou no cinema-HQ em “Deadpool” 1 e 2, mas com um olhar um pouco mais próximo de uma narrativa convencional. Em vez de um protagonista tão poderoso que parece atuar como maestro de sua própria narrativa, que quebra a quarta parede e faz comentários metalinguísticos a torto e a direito, a Arlequina de Yan ainda busca esse poder. Na obra, a protagonista doma apenas o tempo de sua história, mas tem pretensões muito maiores.
Com foco na Arlequina, a obra de Yan acompanha quatro mulheres que precisam se unir para impedir que uma criança seja assassinada. Três delas são vilãs ou anti-heroínas, enquanto a outra é uma policial. Mesmo com os sucessos recentes de “Coringa”, “Aquaman” e “Shazam”, a DC/Warner ainda parece receosa de fazer apostas que fujam muito do modelo estabelecido por Zack Snyder em “O Homem de Aço” – mesmo que os melhores filmes da DC pós-Nolan sejam justamente os que possuem menos envolvimento de Snyder na parte criativa –, e isso se reflete bastante em “Aves de Rapina”. O filme de Yan é bastante apegado ao seu texto, e tem como diferencial apenas a boa construção visual da diretora, que, mesmo que não articule com alguma complexidade qualquer um de seus personagens, cria um universo bastante interessante na Gotham City que conhecemos.
“Aves de Rapina” traz um olhar praticamente oposto ao de “Esquadrão Suicida”. As pautas sociais tão benquistas pelo público e, portanto, vistas como peças-chave pelo estúdio, aqui estão bastante presentes, mas menos no discurso e mais na forma. Saem os planos fechados nas roupas curtas de Margot Robbie, entram os close-ups em seu rosto. Yan está mais interessada em estudar a personalidade do que o corpo da personagem. É interessante essa inversão, pois, mesmo que o olhar feminino já traga uma desconstrução dessa objetificação, a fisicalidade ainda é um elemento essencial para a narrativa.
O longa de Yan é um filme de porrada. Quando a personagem escolhe um bastão de basebol ou um lançador de granadas que explode bombas de tinta e paetê em vez de uma metralhadora ou um revolver, isso é um sinal da mudança de recorte e também do interesse da obra por fortalecer a força física de sua protagonista. A Arlequina de Yan parte de um lugar de submissão e insegurança – a própria vilã ressalta que, teoricamente, ela existe para servir como coadjuvante –, para um lugar de poder. Sai a solução fácil do tiro, entra a criativa, a extravagante.
Talvez até por ordens “de cima”, Yan não tenha a liberdade para tornar sua narrativa tão sombria quanto quer. “Aves de Rapina” é um filme que ensaia ser anárquico e político, mas acaba relegando essas ideias sempre para o subjetivo. A violência contra a mulher como um todo se faz presente de forma tímida, pois é sempre apenas um dispositivo que conduz a cena à ação. Não quer dizer, porém, que as ideias não estejam lá. Na verdade, é até admirável como são justamente nessas cenas que Yan mais mantenha sua câmera tranquila e com poucos cortes, como quando a Arlequina é salva de um sequestro. Mesmo que saiba que aquele momento não sobreviverá inteiramente na montagem do filme, Yan o filma com muito mais cautela do que o restante da narrativa.
Os momentos que nos chamam a atenção, portanto, não são apenas os de visual e violência estilizados, mas também os momentos em que a câmera para, respira e filma a dura realidade que faz aquelas personagens quererem tanto conquistar sua liberdade. É verdade que, sob um primeiro olhar mais superficial, “Aves de Rapina” pode parecer mais um blockbuster genérico do cinema-HQ. Vale, porém, buscar nas brechas entre as cenas de ação o que interliga essa ação. Vale investigar o que leva as personagens a fazer o que fazem, e notar como o absurdo é sempre seu escape, sua fuga do real.