Azor

Azor

A banalidade do mal

Wallace Andrioli - 12 de maio de 2022

É sempre bom encontrar um filme que foge de caminhos mais fáceis proporcionados por seu próprio contexto de realização. Azor, estreia na direção de longas-metragens do suíço Andreas Fontana, tem diante de si a possibilidade de falar abertamente sobre as atrocidades e relações espúrias características da última ditadura militar argentina (1976-1983), mas prefere uma narrativa lacônica, de não ditos e insinuações, quase como se estivesse filmando naqueles terríveis anos de “guerra suja”, constrangido pelo medo da censura e de possíveis represálias.

Essa é a maior força do filme sobretudo porque resulta de um entendimento completo não só do cotidiano sob o autoritarismo, carregado de cuidados e temores principalmente entre pessoas muito próximas ao poder, mas também do próprio mundo das finanças internacionais, no qual seu protagonista Yvan (Fabrizio Rongione) está inserido. A discrição como regra de convívio e pressuposto para o trânsito nos bastidores do topo da cadeia política e econômica também está a serviço, aqui, das práticas abjetas da ditadura. Não à toa, os personagens repetidamente se referem ao antecessor de Yvan, René Keys (Alain Gegenschatz), como alguém que escapava dessas normas e por isso não permaneceu no seu posto – ainda que Azor jamais esclareça totalmente o que aconteceu com o sujeito. Tampouco é gratuito o êxito do protagonista em sua empreitada, conquistando a confiança de todos com quem estabelece contato.

Fontana e o corroteirista Mariano Llinás, que também escreveu e dirigiu o aclamadíssimo La Flor (2018), acertam ao manterem o filme nessa toada até o final. O que, portanto, vale mesmo para o epílogo, enunciado como uma espécie de entrada num novo mundo, com Yvan navegando por um rio numa região aparentemente afastada, possivelmente a caminho de tomar contato direto com a violência política então vigente. O próprio diretor, em entrevista, aproxima essa passagem do filme do romance O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, o que leva à expectativa de um encontro de Yvan com seu próprio Kurtz. Seria o momento da explicitação, da revelação, ao protagonista e ao espectador, do tamanho da barbárie em curso. Isso se dá, no entanto, de forma não tão literal. Persiste em Azor o registro lacunar, mas que, nesses momentos finais, cria uma poderosa sensação de presença por meio da ausência.

A lógica é muito semelhante à das cenas de Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais, que capturam as pilhas de objetos confiscados pelos nazistas de seus prisioneiros nos campos de extermínio. Ou seja, tendo a opção de filmar, como muitos já fizeram, as torturas e assassinatos cometidos pelo Estado durante a ditadura militar argentina, Fontana escolhe remeter às vítimas desses atos mostrando o que foi tomado delas por seus algozes, os vestígios materiais de sua existência. Há aqui um senso muito aguçado de ética na representação do passado, principalmente considerando o afã do filme histórico dramático de, nesse jogo ficcional que o caracteriza, repor o ausente por meio da encenação – como fez Steven Spielberg na controversa sequência da câmara de gás de A Lista de Schindler (1993), para permanecer em exemplos do Holocausto; ou Wagner Moura, mais recentemente, na dramatização detalhada da tortura até a morte de Virgílio Gomes da Silva em Marighella (2019).

Azor é ainda, e sobretudo, um filme sobre a cumplicidade do poder econômico com regimes antidemocráticos. Aqui, novamente, Fontana escapa do óbvio, da construção de personagens puramente detestáveis para encarnar essas elites – não há, por exemplo, nada próximo das tentativas do cinema brasileiro dos anos 1980 de criar equivalentes do real Henning Boilesen, que iam do patético, em Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias, ao monstruoso, em O Bom Burguês (1983), de Oswaldo Caldeira. Ele desafia o espectador ao conduzir a narrativa a partir do olhar de um banqueiro que estabelece negócios com os responsáveis por ações terríveis e ao fazer desse sujeito alguém discreto, elegante, hesitante, distante de qualquer psicopatia aparente. Um homem normal, perfeitamente capaz de produzir identificação no espectador, e que, no decorrer da história, apenas realiza seu trabalho com considerável eficácia. Azor concretiza em imagens fílmicas o conceito arendtiano de banalidade do mal.

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