“Bandeira de Retalhos” é o último filme de Sérgio Ricardo, falecido em julho de 2020. Mais conhecido como o autor e intérprete das célebres canções de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha, Ricardo foi um músico prolífico que, através de sua arte, incorporou uma postura combativa contra a ditadura militar brasileira e demais formas de opressão. Enquanto cineasta, contribuiu com o Cinema Novo com filmes como “Esse Mundo É Meu” (1963) e sintetizou o intertexto poliartístico entre música, cinema e elementos diversos da cultura popular brasileira, como o cordel em “A Noite do Espantalho” (1974). “Bandeira de Retalhos”, adaptação de um texto teatral de sua autoria, foi lançado comercialmente em 2018, após um hiato de quarenta e quatro anos da produção de longa-metragens em sua carreira.
A história do longa confunde-se com a de seu autor: Ricardo, que há mais de trinta anos morava no morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, encontrou em seu lar a ambientação para o filme. Narrativamente, partiu de um acontecimento real, que testemunhou em 1977: a tentativa da Prefeitura do Rio de Janeiro de desapropriar o Vidigal, expulsando seus moradores, sob alegação de que o local não seria geograficamente seguro para habitação. A real intenção da ação da Prefeitura em conjunto com a polícia, entretanto, seria evacuar o local na intenção abrir espaço para a construção de um complexo hoteleiro.
Em paralelo com o desenrolar desses acontecimentos, Ricardo desenvolve a história de um trio de personagens: Bituca, criminoso que está sendo caçado pela polícia, e o casal Tiana e Neno. A dinâmica entre as três personagens é caracteriza pelo que comumente é definido como “triângulo amoroso”, entretanto atribuir essa denominação ao conjunto elaborado por Sérgio Ricardo seria um equívoco: apesar da relação de Tiana com os dois homens ser alicerçada em um passado onde um dia já houve amor, o recorte de “Bandeira de Retalhos” sobre a vida do trio deixa claro que esse qualquer resquício de sentimento positivo esvaiu-se definitivamente, restando apenas o sofrimento. O aparecimento de Bituca na vida do casal causa consequências amargas para todos.
Ao abordar tragédias pessoais em meio ao anúncio de uma tragédia coletiva, Ricardo lida com temas pesados de forma sensível e cuidadosa. A história do trio acaba sendo a trama pessoal mais proeminente em um filme que preza majoritariamente pelo foco em um acontecimento histórico de caráter mais geral.
Parte inerente da vida pessoal de seu realizador, o Vidigal também fora completamente atrelado a “Bandeira de Retalhos” desde que o texto original fora escrito e encenado, enquanto peça, pelo grupo teatral Nós do Morro. Um dos rostos mais conhecidos do grupo, Babu Santana, incorpora o contestador Isidoro, que personifica os comportamentos individualistas em meio à desapropriação domiciliar, sendo um obstáculo para o espírito coletivo necessário para que a ordem seja estabelecida em favor dos moradores. A grande estrela do filme também fica com um papel coadjuvante: o lendário Antônio Pitanga, que anteriormente trabalhara com Ricardo em “Esse Mundo É Meu”, interpreta um velho malandro querido pela comunidade.
Pitanga e Santana são apenas dois entre os diversos personagens que compõem um coletivo trabalhado enquanto tal. Personagens não são o mais importante em “Bandeira de Retalhos”, mas sim a forma como a comunidade como um todo lida com o acontecimento central. Na forma como retrata o coletivo enquanto personagem, Ricardo pode ser comparado, em suas intenções, ao pioneiro soviético Sergei Eisenstein, que fez história ao imortalizar em filme produções protagonizadas pelo coletivo popular, como “O Encouraçado Potemkin” (1925), “Greve” (1925) e “Outubro” (1927).
O povo, em “Bandeira de Retalhos”, não se comporta como uma turba, mas sim como uma soma de esforços, sob a qual são esboçados brevemente alguns personagens na vontade de tridimensionalizar os rostos que compõem a massa. Do supracitado velho malandro ao vendedor do armazém, do advogado de boas intenções ao arruaceiro, os personagens que transitam pelo Vidigal de Sérgio Ricardo, por mais que arquetípicos, não deixam de parecer remetentes ao afeto genuíno do realizador pelo morro. Há inclusive até mesmo um personagem que pode ser lido como espécie de alter-ego ricardeano, um músico que é visto tanto pelos moradores do local quanto pelos policiais enviados para a desapropriação com um olhar estanque por ter tido formação universitária e expressar abertamente ideais políticos considerados subversivos pela ditadura militar então governante no Brasil.
Há nos jogos de cena de Ricardo em seu último filme uma espécie de dinâmica abruptamente teatral na forma como a câmera se posiciona em cena, como passa de um personagem para outro e como passeia entre um conjunto de pessoas, possível adaptação da esquemática de palco presente na montagem original do texto. A opção estética escolhida por Ricardo remete ao “Terra em Transe” (1967) de Glauber Rocha no que se refere à organização dos elementos dentro dessa lógica cineteatral: a visão não de um palco ocidental moderno (que também é o referencial para o cinema desde os seus primórdios), no qual a plateia é tida uma quarta parede, mas sim de um palco circular, característico do teatro elisabetano. Tanto no clássico cinemanovista de Glauber Rocha quanto no canto do cisne de Sérgio Ricardo, a câmera constantemente é arrebatada por grupos de personagens que se movimentam e interagem entre si dentro da lógica do palco circular. Intencionalmente ou não, ambos conquistam o maior recurso imersivo do teatro elisabetano: o de fazer o espectador se sentir dentro dos acontecimentos, parte do grupo, testemunha ocular.
Imagens de arquivo televisivas que documentam a tentativa de desapropriação do Vidigal pontuam alguns momentos de “Bandeira de Retalhos”. As vinhetas em preto e branco contrastam com a cor do restante do filme como um breque no cineteatro ricardiano. O preto e branco aqui é o representante de uma realidade documental quando contrastado com a encenação colorida que caracteriza a dramatização dos fatos ali abordados.
A dimensão musical que percorre toda a obra de Ricardo não deixa de estar presente em seu último filme. Mesmo que potencialmente reduzida, ainda se manifesta em alguns momentos de “Bandeira de Retalhos”, desde seu início, que abre com um breve número de hip hop – também uma demonstração de que a relação de Sérgio Ricardo com o cancioneiro popular brasileiro não congelara no tempo, evitando anacronismos. Retornando a temáticas presentes ao longo de seus outros filmes, como a vida nas favelas cariocas que já havia servido de matéria prima para “Esse Mundo É Meu”, o cineasta se despede com um filme, a sua maneira, pessoal e passional.