Batalha Real se amarra em dois discursos bem definidos. Um cenário onde o Japão perdeu a esperança nos jovens, sofre uma crise econômica, desobediência civil e a situação cria famílias impactadas por uma falta de sentido, revolta e depressão. Para solucionar esse problema a fim de eliminar futuros adultos patéticos que serão inúteis ao Estado, e falhando na educação básica, é criado o Ato de Reforma Educacional do Milênio – ou o Ato da Batalha Real que dá nome ao filme (do original, Battle Royale ou Batoru Rowaiaru). De tempos em tempos, uma classe é presa numa ilha e obrigada a matar todos os colegas até que sobre um.
A situação problemática de crítica se une ao trash gráfico de uma melodramática viagem escolar de último ano. O real é deixado de fora da cinematografia e abraçamos uma violência desesperadora, triste e exagerada para o público. Se a morte é o recurso mais fácil para o Estado solucionar seus problemas, que então a visualizemos da forma mais crua possível, seja nos ataques ou na despedida.
A história em si, é uma adaptação de um livro de mesmo nome com a mesma premissa final. Alunos presos numa ilha como parte de um experimento estatal, obrigados a matar até restar apenas um sobrevivente. No longa de 2000 dirigido por Kinji Fukasaku, o Estado tem pouca explicação, mas sabemos que estamos vendo um plano maligno de contenção da rebeldia juvenil assistida por todos. O lugar comum originou um subgênero revolucionário para o mundo dos games, além de influenciar Jogos Vorazes, umas das mais aclamadas franquias juvenis dos últimos anos.
Os personagens aceitam seu destino, correm atrás da vida dos colegas e também de si mesmos. Não há escapatória no jogo da vida. E para o cinema, o espetáculo é o que vale. Zoons na cara de personagens cuja vontade da matança foi incorporada. Planos abertos em situações de total descontrole e caos. Flashbacks para um apego emocional com os personagens. A apresentação das regras é feita por uma apresentadora animada como se fosse um show de entretenimento.
O real do título é transformado num falso espetáculo. As mortes claramente, para aquela ficção, são reais e de real importância para os colegas. Mas é somente a memória e a interação entre os envolvidos que torna os últimos suspiros e gritos uma real perda. Chega a ser cômico a jogada de rosto ou a última confissão dos alunos, a jogada de corpo animada seguida de sucessíveis tiros no corpo. Há ainda o fato de os estudantes serem pré-adolescentes. Juventude à flor da pele, alguns mais infantis, estereótipos de valentões, passados de bullying, paixonites escolares, os mais estudiosos focados em um futuro promissor. Tudo isso é revelado e desconstruído dentro de uma ilha no fim do mundo, nas últimas horas de vida.
O fato de estarmos assistindo a uma matança descontrolada e a vivência escolar traz um ar dramático importante e completo para a história. Situado também num cenário desolador político, as memórias e sonhos vem à tona de forma alucinada e tem a função de injetar um último fio de esperança para os personagens ou a raiva que falta para apertar o gatilho na cabeça daquele que sempre fez piada com você.
Dito isso, o real da batalha entra em campo. O tempo é escasso e os membros da sala vão caindo um a um. O jogo é contado pelo professor responsável, que volta para a classe após uma demissão. Depois uma falta conjunta dos alunos, ele é surpreendido por uma facada. Ele próprio é uma vítima da depressão que corrói o cenário, abandonado pela família e com uma memória de uma época onde a autoridade era o que valia como palavra. Para ele, a contagem dos mortos nada mais é que o seu trabalho e se acomoda de todo o mal que a classe lhe fez, ainda que a trama em si coloca traços do autoritário, um ar de seriedade e ódio perante aos alunos, é uma vítima moldada pelo Estado, ainda que obediente, faz parte e já não liga mais para o próprio cenário.
A primazia do longa se concentra em conseguir amarrar pontas de uma trama política protagonizada de forma violenta por adolescentes, aqueles cuja a culpa é tirada do Estado. No decorrer da trama, conhecemos a história dos personagens, o que viveram e como isso impacta quem eles são agora. Os protagonistas se dividem entre os mais sanguinários e os persistentes numa fuga da ilha. O filme joga num estranho maniqueísmo da trama juvenil. Ainda que cenas onde uma pose de mal ou ingenuidade toma conta do personagem, simpatizamos não com seus atos, e sim com o que os justifica. Vibramos com a violência gráfica de ações maníacas e nos emocionamos com o desespero pela própria vida. É arma na mão de criança levado a sério, num espetáculo filmado e programado pelo Estado.
Além disso tudo, a trama nunca deixa de lado o contraste entre os adultos e as crianças. “Eu nunca gostei mesmo dos adultos”, uma das crianças que abraça aquele mundo em um dado momento diz. Ao mesmo tempo que transmite um falso entendimento do jogo, não deixa de ser um pilar da revolta civil em cima do Estado. Afinal, para os jogadores os únicos inimigos são os adultos que os enfiaram naquele mundo horrível. Uma manipulação que pode enganar eles mesmos, mas se justifica pelo cenário desesperador que se encontram.
Ainda que a influência de Batalha Real permaneça viva nos games e nas produções do gênero em séries e no cinema, a criação de Kinji Fukasaku permanece única 20 anos depois por saber brincar com o lugar comum sem cair numa paródia de horror exagerada, situada em um melodrama juvenil político. O filme se consagrou como uma das maiores bilheterias japonesas de todos os tempos, e chegou até a ser confiscado e proibido em 2013 na Alemanha, reconhecido como um perigo para os adolescentes. Se a influência consagra Hollywood e o capital, a distopia política assusta e diz mais sobre o Estado que vivemos do que a própria ficção.