Adaptar a obra de um artista tão consagrado quanto Nelson Rodrigues não é tarefa das mais fáceis. A obra em questão já ganhou, inclusive, outra versão cinematográfica, dirigida por Bruno Barreto em 1981. Murilo Benício decidiu, em seu primeiro projeto como diretor, fazer uma nova versão da peça de 1960 “Beijo no Asfalto”, de Rodrigues. Porém, o caminho escolhido vai além de ser uma reles adaptação. O “Beijo no Asfalto” de Benício desconstrói o texto original para chegar à essência da sociedade brasileira. O filme busca compreender o cosmo do texto original para extrair de sua essência comentários sobre nosso povo.
A premissa é a mesma. O jovem Arandir (Lázaro Ramos) presencia um acidente e, ao correr para socorrer a vítima, recebe do moribundo sujeito um último pedido: um beijo. O pedido pelo gesto de afeto é atendido, mas acaba repercutindo negativamente, o que faz com que Arandir tenha sua sexualidade e integridade questionados por sua família e pelas autoridades. Tudo se desenrola em um efeito bola de neve, fazendo com que Arandir seja transformado em inimigo do modelo de sociedade no qual vive, o que pode lhe custar sua paz e sua liberdade.
A obra se diferencia já em seus primeiros momentos, quando Benício decide filmar desde a claquete que anuncia o início das filmagens, até o acompanhamento da mesa que reúne o elenco para discutir o roteiro. “Beijo no Asfalto” reconstrói parte da trama original de Rodrigues, mas está interessado não na história em si, mas do DNA dela. Benício quer chegar à gênese da peça e extrair dela uma análise do contexto social no qual ela foi produzida. Alguns momentos sequer são encenados em um ambiente pertencente à diegése, existindo apenas na mesa de discussão dos atores. É como se o objetivo fosse resgatar não a peça de teatro, mas compreender seu contexto de concepção.
Como Amir Haddad comenta em uma das cenas que trazem as conversas do elenco, o texto faz parecer que a situação é incontornável, como se Arandir estivesse destinado a ser transformado em pária social pelo simples beijo que deu. “Beijo no Asfalto” é um filme que respeita demais sua origem teatral, e por isso aposta principalmente nas atuações e diálogos para desenvolver a narrativa, e essa ideia de inexorabilidade está presente em cada interlocução. Autoridades como a polícia e a imprensa parecem ser bastiões da moralidade que não podem permitir que a ordem moral da sociedade seja rompida sem que isso desencadeie uma séria punição.
Pelo fato de haver sempre a quebra da ficção com as reuniões de elenco, “Beijo no Asfalto” flutua entre o diegético e o extra-diegético por praticamente toda a sua metragem. A fotografia em preto e branco de Walter Carvalho mantém-se nos dois momentos. Com essa escolha, além de expor a máscara do cinema, a obra cria um senso de unidade que é uma das pistas para entender a visão que Benício quer estabelecer: a de que o Brasil de hoje e o Brasil de 1960 não são lá muito diferentes no que tange às questões morais.
O que temos, então, não é uma nova adaptação da peça, e sim um completo desmonte da estrutura fílmica que funciona também, afinal, como uma dissecação da escrita do próprio Nelson Rodrigues. Por seu estilo de linguagem que mistura o real e o fictício de forma que ambos parecem estar cientes de que coexistem, “Beijo no Asfalto” ainda consegue também ser um belo ensaio sobre o processo criativo coletivo, já que as reuniões trazem, a todo momento, artistas discutindo suas visões sobre a obra de Rodrigues.
“Beijo no Asfalto” é audacioso por subverter sua estrutura enquanto adapta uma obra tão renomada; eficiente por conseguir amarrar ficção e não-ficção de maneira tal que ambos parecem coexistir no mesmo universo cinematográfico. É um filme capaz de compreender os alicerces sentimentais da peça de Nelson Rodrigues e, a partir disso, trazer para 2018 uma obra que desde 1960 mantém-se atual.