“Beleza Americana” é um dos melhores exemplos da filosofia “a jornada é mais importante do que o destino”. Ao fim das suas duas horas, os personagens do filme de Sam Mendes não alcançam nenhum feito notável. A bem da verdade, terminam a história em situação até pior do que a do começo. Mas seus processos de autodescobrimento, suas jornadas particulares de transformação, valem mais do que os resultados destas transformações. Caem, mas “caem pra cima”.
A representação mais cristalina dessa abordagem é o arco do protagonista Lester Burnham (Kevin Spacey). Em sua primeira participação no filme, se dirigindo diretamente ao público, avisa que estará morto “em menos de um ano”. O espectador brasileiro, se já teve a oportunidade de ler este livro, encontrará semelhanças gritantes entre “Beleza Americana” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.
Assim como Brás Cubas, Lester tem o “privilégio” de ser um narrador morto. Desprendido das convenções sociais dos vivos, pode ser completamente sincero sobre suas percepções. Além disso – principalmente por isso -, Lester usa sua história de libertação para fazer uma crônica sobre os Estados Unidos, transformando seu subúrbio em objeto de estudo social, buscando descobrir a tal “beleza americana” que o título sugere.
Mas o filme só funciona porque, além de Lester, há personagens secundários construídos para explorar cada aspecto da sociedade americana.
A importância dos coadjuvantes de “Beleza Americana”
“Beleza Americana” tem cinco personagens secundários com suas próprias jornadas e outros três “terciários”, que desempenham funções narrativas, mas têm papéis menores dentro da história. Eles podem ser analisados individualmente, agrupados ou confrontados entre si. Não é por acaso que a família do coronel Fitts (Chris Cooper) espelha a de Lester: casal e um filho. Os conflitos entre necessidades e desejos de Fitts e Lester são muito próximos. A principal característica de Ricky (Wes Bentley) fala diretamente à principal fraqueza de Jane (Thora Birch). Angela (Mena Suvari) usa da mesma “estratégia para o sucesso” que Carolyn (Annette Bening).
Os papéis de Brad (Barry Del Sherman), Barbara (Allison Janney) e Buddy (Peter Gallagher), mesmo pequenos, são fundamentais para criar o contraponto entre os personagens que querem mudar e os que estão “perfeitamente” ajustados ao “Sonho Americano“.
Ethos, Logos e Pathos
O presidente da República diz que não gera retorno, mas vamos falar de Filosofia assim mesmo.
Em “A Retórica”, Aristóteles (herdeiro de Platão e Sócrates) define os três pilares da “arte do convencimento”: Ethos, Logos e Pathos. Cada elemento desse “tripé” cobre uma parte do processo de defender uma ideia. Este texto fará uma abordagem bastante superficial do tema, então fica desde já a recomendação de leitura.
O Ethos representa os hábitos, os costumes que identificam um grupo em relação aos demais. É o conjunto de comportamentos considerados adequados. O Logos, por sua vez, é o conjunto de fundamentos, a lógica por trás de um argumento. Já o Pathos, usando a definição platônica, é “o ato ou efeito de se espantar”. Um argumento pode ser defendido, portanto, em três vias: ele pode ser eticamente aceitável, possuir uma lógica interna ou causar um espanto, um sentimento transformador.
“Beleza Americana” trabalha com Ethos, Logos e Pathos dos Estados Unidos para justificar as motivações de seus personagens. Vamos analisar as “razões de ser” de Lester e do coronel Fitts, os dois personagens mais afastados no espectro ideológico, para exemplificar este processo e como ele dá credibilidade às tomadas de decisão de cada um (Spoilers no próximo tópico).
Leituras antagônicas
O evento catalisador da mudança de Lester é quando a editora onde trabalha começa uma “caça às bruxas” para demitir um funcionário “dispensável” e encobrir os gastos indevidos de um dos diretores com prostitutas. A lógica por trás dessa “solução” desrespeita o Ethos nacional de que o trabalho duro é recompensado. Lester não fez nada, mas está com o emprego em risco. Isso desperta nele o Pathos: jamais se curvar a uma injustiça (ora pombas, o Movimento do Chá de Boston foi fundamental para a independência do país e surgiu da indignação perante impostos abusivos).
Lester sente a responsabilidade do mundo sobre seus ombros e não vê o retorno esperado. Se as regras são injustas, faz sentido que sejam revistas. Destruídas, até. Os Estados Unidos existem sob o signo da reconstrução, do do over. Lester vê em Angela um objetivo palpável (sem trocadilhos) para simbolizar a sua transformação – que, a rigor, é um recomeço. Uma nova chance de viver o “Sonho Americano”.
Fitts é um homossexual que reprimiu sua individualidade por um senso coletivista e um seguimento estrito a regras. Outro elemento do Ethos americano é o da “Terra da Oportunidade”, onde todos têm a mesma chance de prosperar. Lester se considera empoderado a simplesmente jogar tudo pro alto e voltar à vida simples de jovem, mas Fitts enxerga a contrapartida desta afirmação: todos têm oportunidades iguais porque respeitam as mesmas regras. Por isso, é lógico para ele que sua homossexualidade é errada. Essa dinâmica de apresentar o objetivo de um personagem concretizado em outro, com o sinal invertido, torna as subtramas relevantes.
Rosas vermelhas
Na Grécia Antiga, a rosa era associada a Afrodite, deusa do amor, da beleza, do prazer, da paixão e da procriação. Quando o Império Romano – que havia absorvido praticamente toda a cultura grega – se converteu ao Cristianismo, a rosa passou a ser associada à Virgem Maria. É daí que vem o nome da prática religiosa do Santo Rosário. Os próprios Estados Unidos adotaram a rosa como seu emblema floral (“flor-símbolo”) em 1986, via decreto assinado pelo então presidente Ronald Reagan.
É curioso que uma flor com significados simbólicos tão conflitantes seja o símbolo dos Estados Unidos. Olhando em perspectiva, Sam Mendes não teria uma escolha mais óbvia num filme chamado “Beleza Americana”. Seus personagens são tão conflitantes quanto os significados das rosas que dividem tela com eles.
A rosa também aparece em quatro cartas do baralho de tarô. Destaco duas: o Mago e a Morte. O Mago é o “mestre da realidade”, aquele que trabalha com os recursos disponíveis, está no controle das situações e é senhor dos próprios pensamentos. Lester pode ser interpretado como o “Mago” da história, visto que ele também é a “ponte” entre Céu e Terra.
A rosa da carta da Morte é branca. Pode evocar os sentidos de pureza e sinceridade, como na interpretação cristã. Obviamente, o clímax de “Beleza Americana” é a morte de Lester, anunciada logo no começo do filme. O tarô se encaixa porque a carta da Morte não representa apenas a morte em si, mas uma conclusão. E é bom lembrar: Lester é assassinado em frente a um vaso de rosas.
Afinal de contas, qual é a “beleza americana”?
Sam Mendes não oferece uma resposta para essa pergunta. A “beleza americana” pode estar no amor próprio de Jane. Ou na epifania de Angela de que é OK ser comum e que quase ninguém é, de fato, excepcional. Talvez esteja na compreensão de Lester que o tempo não volta, mas que a liberdade não é exclusiva da juventude. Ou até no olhar de Ricky, capaz de perceber que mesmo vítima de uma morte tão aleatória, Lester concluiu sua jornada e partiu em paz. Se há uma diferença entre ele e Brás Cubas, é exatamente esta: o protagonista de Machado de Assis, em morte, percebeu o quão vazia de sentido foi sua vida. Já o protagonista de Sam Mendes percebeu que há beleza demais. Tanta beleza que às vezes é difícil de reparar.
É mais provável que a verdadeira “beleza americana” para Sam Mendes seja que apenas nos Estados Unidos pessoas tão diferentes, com visões de mundo tão opostas, possam viver no mesmo subúrbio e, mais do que isso, sejam todas elas igualmente americanas.