O apreço que Carlos Reichenbach tinha pelas imagens que filmava o imortalizou como um cineasta de primeira linha no cinema brasileiro. Fotógrafo de diversos filmes entre os anos 1960 e 1980, desde seus primeiros projetos enquanto realizador é visível uma vontade, uma paixão muito grande pelo fazer cinema. Mesmo quando tratando de temas desagradáveis, Reichenbach não se deixava cair no desleixo ou em uma abordagem fria, distante. Filmava o ódio com o mesmo interesse com o qual filmava o amor. Esse compromisso com a imagem, independente da temática, é o que faz filmes como “Falsa Loura” (2007) serem tão especiais, e com “Bens Confiscados” (2004) não é diferente.
A trama parte de uma premissa digna das tragédias dramatúrgicas de Nelson Rodrigues. Quando a esposa de um Senador da República expõe uma série de escândalos nos quais ele está envolvido, uma de suas amantes comete suicídio. Não se tratava, porém, de uma amante qualquer entre as várias que o Senador tinha, mas da mãe de seu filho bastardo, Luis Roberto. Quando a imprensa descobre a existência do garoto, ele é, a mando do próprio pai, drogado e levado, inconsciente, em uma viagem interestadual. O destino é um exílio forçado em um bangalô próximo a uma praia deserta no sul do país. Isso já pode soar como conteúdo suficiente para preencher um bom filme, mas trata-se apenas de um prólogo.
O foco de “Bens Confiscados” é Serena, enfermeira que fora uma amante de confiança do Senador no passado e é designada por ele para juntar-se a seu filho no exílio, vigiando o rapaz até que a imprensa pare de procurá-lo. Serena acaba assumindo, como em seu emprego, o papel de enfermeira de Luis Roberto, a quem encontra carecendo de auxílio médico. A partir daí a relação entre os dois vai do cuidado ao afeto, seguindo uma espécie de efeito Florence Nightingale que é comum em narrativas cinematográficas, não obstante tocada por Reichenbach de modo em que a relação entre os personagens não cai no clichê ou no desinteressante.
A semelhança com a dramaturgia rodrigueana não se limita à tragédia do prólogo, se estendendo à relação entre Serena e Luis Roberto. A aproximação dos dois não é incestuosa, pela ausência de laços consanguíneos, porém a tensão que há entre eles é aprofundada pela diferença drástica de idade e pelo passado de Serena com o pai do garoto. Há aí, ainda, uma oposição a uma segunda dupla (não soa correto utilizar o termo “casal” para se referir a eles) presente em “Bens Confiscados”, formada pelo capataz que é dono do bangalô onde Luis e Serena estão escondidos, Lobo, e sua esposa, Penha. Entre essas duas duplas, aliás, existem interseções. Luis inicialmente sente-se atraído por Penha, tentando, inclusive, fazer algumas aproximações, mas sendo recusado pela garota. Quando essa possibilidade se fecha, a proximidade entre ele e Serena aumenta e a intimidade entre os dois floresce verdadeiramente.
Para além de remeter à obra do maior dramaturgo brasileiro, a relação entre Penha e Lobo é uma pincelada que Reichenbach dá acerca das questões sociais no Brasil. Penha vinha de uma família em que o pai explorava a filha mais velha, prostituindo-a; essa filha era a provedora da casa. Quando Lobo ofereceu-se em comprá-la, o patriarca vendeu Penha em seu lugar. Mal saída da infância, a menina foi comercializada como mercadoria, tomada como esposa por um homem que nunca vira em sua vida e, desde então, levada para a cama à força por ele. A exploração sexual de menores de idade é uma questão secular no país, sobre a qual Reichenbach joga uma luz em “Bens Confiscados” (Dois anos depois de “Bens Confiscados” o pernambucano Cláudio Assis dedicaria seu filme “Baixio das Bestas” inteiramente a essa questão, que também fora um dos temas abordados por Jorge Bodanzky e Orlando Senna em “Iracema”, de 1975).
Se Penha e o filho do Senador estão na mesma faixa etária (o que Reichenbach faz questão de explicitar pela boca das personagens algumas vezes ao longo do filme), a forma como ambos se relacionam com as personagens mais velhas é completamente diferente. Abusada por Lobo, Penha inicialmente se mostra resignada a seguir suas ordens, sendo gradativamente incentivada por Luis e Serena a largar o marido. A personagem vai se tornando progressivamente mais desafiadora ao longo da primeira metade do filme. O espectador para de acompanhar essa evolução quando a narrativa muda de lugar, e Serena e Luis são movidos da casa de Lobo para um hotel por ordens do Senador. Ali a história dos dois segue se desenvolvendo. O filme tem uma divisão muito bem demarcada entre essas a parte do bangalô e a parte do hotel, que não se demonstra através de cartelas, mas sim através do tom.
Outras personagens paralelas vão atravessando a história dos dois fugitivos, como Miklos, um húngaro que tenta levar Serena para a cama a todo custo, ou um grupo de pedagogas com quem Luis se envolve. Estas se diferem muito das demais mulheres apresentadas no longa: Penha é uma criança triste e abusada, Serena uma mulher de meia-idade assertiva, porém apaixonada e ainda restringida por modos tradicionais. As pedagogas são informais e possuem uma mentalidade mais liberal; fumam maconha e não veem tabus na sexualidade humana.
Quando está com elas, Luis presencia trocas de afeto, manifestadas por beijos e carícias sexuais que Reichenbach consegue filmar com paixão, mas sem fetiche. Apesar de ser um breve momento, ele sintetiza a tônica do que é o sexo para o cinema de Carlos Reichenbach. É um cinema que está completamente distante do moralismo, mas que também não se interessa no explícito pelo explícito. Retrata o amor e o sexo com naturalidade, com carinho e com pureza. Nesse sentido, está muito próximo do cinema de Neville D’Almeida, que junto com Reichenbach é um dos poucos cineastas brasileiros a não tratar o sexo com moralismo. A sequência do beijo entre as pedagogas, aliás, é filmada da forma bem diferente de uma sequência mais ao início de “Bens Confiscados”, na qual Penha e Lobo são mostrados na cama. Enquanto a primeira é descortinada pela câmera como um momento sublime, a segunda é retratada como um momento de terror. Reichenbach frisa que amor e sexo são uma coisa, enquanto posse e abuso são outra.
Ao final do longa, Serena é afastada de Luis Roberto quando este é levado de volta para o Senador. Ao sair do hotel em que ambos estavam hospedados, sem rumo, ela encontra Penha coberta de sangue no banco traseiro de uma viatura policial. Se o filme é dividido entre a parte do bangalô e a parte do hotel, esse retorno de Penha ao final da parte do hotel é uma espécie de epílogo que serve para fechar o arco narrativo das duas duplas. A dupla Serena-Luis encontra o fim com a separação forçada; a dupla Penha-Lobo o encontra no assassinato do homem. Quando Serena se liberta da condição de fugitiva, tem seu amor confiscado. Quando Penha se liberta do abuso, é presa por homicídio. Se o desfecho do longa de Reichenbach pode parecer por demais pessimista, é possível dizer que ele é um retrato sóbrio (porém não desprovido de estilo) acerca da condição da mulher no Brasil. O tema é cíclico na obra do cineasta, sendo sempre desenvolvido em filme como “Lillian M.: Confissões Amorosas/Relatório Confidencial”, “Garotas do ABC” e “Falsa Loura”. Talvez o triunfo de “Bens Confiscados” seja não restringir essa visão apenas à experiência de uma protagonista, mas apresentar como contrapontos tipos diametralmente opostos de mulher nas histórias secundárias que são desenvolvidas. Diretor como poucos no Brasil, o cinema de Carlos Reichenbach é progressista, formalmente estimulante e narrativamente envolvente.