Falar de Ingmar Bergman é um desafio. Se a tarefa é analisar ou desconstruir uma de suas obras, por experiência própria, posso dizer que é um dos cineastas mais complexos de se destrinchar suas narrativas. Tanto pela complexidade temática quanto pelo apuro estético, escrever sobre o cinema de Bergman é uma tarefa desafiadora. E se falamos de Ingmar, o sueco criado em família católica que marcou a história do cinema, mas teve vida conturbada (Bergman casou mais de cinco vezes, teve seis filhos e abandonou todos), a dificuldade é a mesma, visto que os próprios relatos do artista são conflitantes entre si. Bergman é, então, uma figura enigmática, esfíngica, mas igualmente fascinante por ter sido, indubitavelmente, um dos mais influentes cineastas da história.
Bergman – 100 Anos, documentário de Jane Magnusson, parte de 1957, ano que fez a carreira de Bergman ascender – o diretor já conquistara os olhos do mundo em 1953, com Mônica e o Desejo, mas em 57 lançou duas de suas obras mais bem sucedidas: O Sétimo Selo e Morangos Silvestres – para, então, passear por toda sua carreira. Da infância problemática aos últimos dias isolado em sua ilha; das primeiras conquistas cinematográficas à aclamada carreira no teatro.
O documentário de Magnusson coleciona acertos em seu começo. Em vez de mitificar a figura do cineasta, opta por expor, desde os primeiros momentos, a fragilidade do humano Bergman, trazendo depoimentos que informam o público sobre os crônicos problemas de saúde de Bergman e comentando seu conturbado relacionamento com familiares, mulheres e filhos. Esse início garante que, mesmo que em certo ponto o longa torne-se bajulador, não flerte com um tom hagiográfico, já que a humanidade e falibilidade do documentado estão lá desde o começo.
Algumas escolhas da documentarista, porém, são no mínimo questionáveis. Fazer um documentário sobre Ingmar Bergman e não trazer depoimentos de Max von Sydow, um dos atores que mais colaborou com Bergman – A Fonte da Donzela, O Sétimo Selo e A Hora do Lobo são apenas alguns exemplares da frutífera parceria – não parece ter uma explicação razoável.
Mais questionável ainda é o fato de Magnusson trazer uma participação tão ínfima de Liv Ullmann, grande amor da vida de Bergman e parceira de muitas de suas principais obras, como Persona, Gritos e Sussurros, Sonata de Outono e Cenas de um Casamento. Tão estranho quanto é a ausência total de Harriet Andersson e Bibi Andersson, duas parceira de longa data de Bergman, que sequer aparecem entre os entrevistados.
As ausências causam um claro desequilíbrio, já que o filme é ciente da dificuldade de chegar-se ao verdadeiro Bergman por meio de seus escritos, que eram sempre contraditórios. Esse efeito “Rashomon” poderia ser amenizado justamente pela presença de figuras tão marcantes da carreira do cineasta, que foram protagonistas e coadjuvantes de suas grandes obras e momentos da vida. Bibi, Harriet e Liv foram, afinal, não só musas, mas parceiras de Ingmar Bergman, e compreenderam sua persona com mais propriedade do que figuras como Barbra Streisand, que não acrescenta absolutamente nada à obra.
Se na escolha de seus entrevistados, Jane Magnusson não acerta, o mesmo não pode ser dito de seu intuito de analisar como as obras de Bergman retratam elementos de sua vida. Afinal, nenhuma obra de arte existe em um vácuo; qualquer pintura, música, poema ou filme leva, consigo, um pouco de seu autor. Com Bergman, porém, isso alcança um novo patamar.
Há, claro, os casos mais óbvios, como Fanny & Alexander e Cenas de um Casamento, que notoriamente falam sobre a infância de Ingmar e de seu relacionamento com Liv Ullmann, respectivamente – aliás, lembrar que Bergman fez um filme sobre sua relação com Ullmann só mostra o quão grosseiro é o erro de não trazer maior participação da atriz. Mas há, também, conexões mais sutis. O Ovo da Serpente, único filme de Bergman que aborda o nazismo, é claramente uma busca de autoperdão de Ingmar por, no passado, ter flertado com o nazismo, assim como suas obras que retratam a aceitação da morte têm uma clara ligação com sua luta contra dores que o acompanharam por sua vida toda, e o faziam temer que o fim pudesse chegar a qualquer momento.
As reflexões oriundas das comparações são um acerto, principalmente, por nunca cair na armadilha de tentar explicar ou sintetizar os simbolismos da cinematografia do cineasta. Bergman – 100 Anos faz, sim, uma viagem pela trajetória do cineasta e pelos estudos e reflexões de seus diários, mas sempre respeitando a subjetividade de obras tão complexas quanto um Persona.
O respeito em excesso, porém, em certo ponto permite uma bajulação excessiva. A já mencionada Barbra Streisand, por exemplo, só é entrevistada para elogiar o cineasta que sequer trabalhou com. Bergman também é muito referenciado por suas premiações, mas tem pouco de seu legado comentado. Como ignorar, por exemplo, a influência que Monika e o Desejo teve na Nouvelle Vague, talvez o mais revolucionário movimento cinematográfico da história?
Tão bem intencionado quanto falho, Bergman – 100 Anos é um documentário interessante para conhecer mais sobre a juventude do cineasta e sobre como seus traumas, medos e experiências influenciaram suas grandes obras. Havia potencial para um filme memorável, mas o trabalho de Magnusson se perde por não ceder espaço para os principais coadjuvantes da vida de Ingmar Bergman. Fazer um documentário sobre o diretor sem Max von Sydow, Harriet Andersson, Bibi Andersson, além de ter uma participação curtíssima de Liv Ullmann e praticamente ignorar Sven Nykvist, o principal parceiro de criação do diretor, é uma tarefa ingrata, que ceifa do público a chance de aprofundar-se na psique de uma das pessoas mais importantes da história do cinema.
Seria injusto, porém, crucificar toda a obra pelo recorte de entrevistas. Por mais que esse problema impeça Bergman – 100 Anos de alcançar todo seu potencial, o longa é bem-sucedido em sua principal ambição: jogar uma luz sobre os pontos marcantes da vida do cineasta que, ora consciente, ora inconscientemente, nortearam suas criações. Há um pouco de todo artista em sua arte, e com Bergman não seria diferente.