Bixa Travesty

Bixa Travesty

Wallace Andrioli - 25 de setembro de 2018

Os diretores Kiko Goifman e Claudia Priscilla se esforçam para tornar “Bixa Travesty” um documentário pouco convencional, que reproduza, na tela, a potência da obra de Linn da Quebrada sem recorrer a artifícios comuns no gênero. Há algumas soluções que de fato funcionam: o fictício programa de rádio comandado por Linn e por sua parceira artística Jup do Bairro substitui com criatividade as entrevistas no formato talking heads, recurso muito presente nos tantos documentários musicais feitos no Brasil; as várias cenas de shows da dupla, apesar de quase sempre obedecerem a uma estética de DVD, são eficientes no intento de capturar a força das performances, sobretudo quando os diretores aproximam sua câmera da protagonista; já os muitos momentos observacionais geram resultados mistos, indo da instigante (mas logo descartada) tensão afetuosa com a mãe da cantora à criação de um mote narrativo bobo com uma luva que foi de Ney Matogrosso, que acaba retornando posteriormente na narrativa para, no fim das contas, não significar realmente nada.

É quando se dedica a uma relação mais direta com o corpo de Linn que “Bixa Travesty” cresce. Em cenas produzidas para o próprio filme, como a do banho da protagonista com a mãe, ou no uso de imagens de arquivo, como as da passagem de Linn pelo hospital para tratar um câncer, Goifman e Priscilla conseguem um melhor dimensionamento da riqueza da personagem, figura ao mesmo tempo transgressora e afetuosa, dotada de fragilidades ordinárias mas que lida com elas de formas bastante próprias. É exemplar nesse sentido a sequência de fotografias dela no hospital, nas quais subverte com o corpo convalescente a seriedade desse espaço.

No entanto, o filme falha no intento de ser tão complexo quanto sua biografada. Na cena final, ela anuncia que, para transtorno dos conservadores, seu corpo continua em obra, em permanente transformação. “Bixa Travesty” não consegue emular, sequer se aproximar, dessa capacidade de Linn de transtornar. Trata-se de um documentário excessivamente reiterativo, espécie de veículo para a artista apresentar sua obra e opiniões sobre o mundo. Não há tensão, fissuras que de alguma forma retirem a protagonista de uma posição de conforto dentro do filme. É como se Goifman e Priscilla se apagassem diante de Linn. Nesse sentido, “Bixa Travesty” não está muito distante de “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira, também exibido no 51º Festival de Brasília e que adota tratamento semelhante em relação a suas entrevistadas.

É curioso como dois documentários tão diversos no conteúdo, que lidam com personagens de gerações muito distintas e, sobretudo, realizados por diretores a princípio nada semelhantes – Lira é uma documentarista mais convencional mesmo, enquanto Goifman dirigiu, por exemplo, “33” (2002) e “FilmeFobia” (2008), filmes bem mais autorreflexivos e que trafegam abertamente pelos limites entre o real e o ficcional – acabam se aproximando no conservadorismo formal. E pior: ambos protagonizados por mulheres, cis ou trans, transgressoras, que a seu tempo enfrentaram de frente o status quo político e comportamental.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para o 51º Festival de Brasília. Para ler outros textos de nossa cobertura, clique aqui.

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