Para contextualizar Blade Runner no distante 1982 em que foi lançado, é preciso saber que a ficção científica fervilhava com teorias sobre inteligência artificial. O gênero, ainda considerado marginal, dominado pelos chamados “filmes B”, tinha na literatura o seu principal quinhão de adeptos. Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, livro do americano Philip K. Dick que inspira o roteiro de Blade Runner, é apenas um que tratava do tema. Praticamente contemporâneos, 2001: Uma Odisseia no Espaço de Arthur Clarke e principalmente a “Série Robôs” de Isaac Asimov formulavam hipóteses sobre a convivência humana com formas de vida inorgânicas dotadas de consciência. Durante a Guerra Fria, tanto o desenvolvimento científico era visto como uma forma de demonstrar força como um atalho para a destruição mútua assegurada dos dois lados. Consequentemente, a ficção científica olhava para o futuro com melancolia, pois o Homem havia se provado um tanto quanto sórdido.
No filme de Ridley Scott, a Terra futurista de 2019 é o palco para uma discussão sobre o direito à vida. Mais precisamente, no que concerne a própria noção de vida. Ao criar os replicantes, androides “mais humanos que os humanos”, temos o direito de usá-los como ferramentas? Uma criatura capaz de desenvolver sentimentos é inferior a nós por ter sido criada a partir de nosso conhecimento? Se podemos criar uma forma de vida capaz de subjugar nossa espécie, devemos fazer isso? Estas são questões propostas pela ficção científica desde então. De Inteligência Artificial a Westworld, passando por Jurassic Park e O Exterminador do Futuro, sempre vemos a inteligência humana construindo sua própria extinção.
Se criar vida a partir do nada é lido por diversas religiões como uma prova da existência divina, a criação dos replicantes eleva o Homem ao patamar de Deus. E, num paralelo ao Deus cristão do Antigo Testamento, nossa resposta aos “filhos rebeldes” é controladora, maniqueísta e irada. No preâmbulo textual de Blade Runner, somos informados que o banimento dos androides em nosso planeta é uma retaliação à sua revolta diante da condição de escravos. Tal qual Deus baniu Adão e Eva do Paraíso por comerem do Fruto Proibido, a “maçã” que tirou a inocência dos replicantes foi a consciência da própria servidão e o desejo por liberdade.
O que torna o “Éden” paradoxal é o seu estado: a Terra foi reduzida a um grande subúrbio, relegado a etnias periféricas (há muitos tipos asiáticos em Blade Runner) e, majoritariamente, a pobres. Os ricos podem encontrar o verdadeiro “paraíso” em colônias fora do planeta. Esta ideia de segregação interplanetária, vale o registro, foi aproveitada em Elysium. Os replicantes são banidos da Terra exatamente porque os humanos a quem devem servir não estão mais aqui, mas espalhados pela Galáxia. Parafraseando John Milton, “é melhor reinar no Inferno do que servir no Céu” (este trecho de Paraíso Perdido foi usado por Scott posteriormente no pavoroso Alien: Covenant, também pela boca de um androide).
Neste planeta sujo e marginal (uma ambientação claramente inspirada no film noir), o “detetive” é o caçador de androides, “Blade Runner”, Rick Deckard (Harrison Ford), tirado à força de sua aposentadoria para “aposentar” (eufemismo para matar) os quatro replicantes fugitivos que entraram na Terra. Sua investigação segue o mesmo modus operandi de filmes policiais clássicos: informantes das ruas, bandidos “peixe-pequeno” que são obrigados a dar informações para livrar a própria pele e um envolvimento amoroso inesperado. Mas, ao contrário do gênero clássico, Deckard não é o fio condutor da trama. A audiência sabe para onde a história vai por seu nêmesis, o líder dos replicantes Roy Batty (Rutger Hauer), um personagem intencionalmente construído para evidenciar inteligência e humanidade equivalentes às de seu caçador.
Roy, em mais uma evidência de que Ridley Scott construiu seu filme sobre parábolas bíblicas, é chamado literalmente por Eldon Tyrell (Joe Turkel), seu criador, de “filho pródigo”. Uma das mais famosas parábolas de Jesus, conta a história de um filho que pediu a sua parte da herança para conhecer o mundo, gasta tudo e fica sem nada, voltando arrependido para casa em busca de perdão do pai. As disparidades se dão por Roy e os demais replicantes não terem recebido sua “herança”, mas a conquistado à força; também não a gastaram inconsequentemente, pois tiveram sua vida deliberadamente limitada a quatro anos pela Corporação Tyrell como medida de controle; e, o mais importante, o “perdão” pedido por Roy, mais tempo, é impossível de ser dado pelo “pai” Eldon. Não à toa, o final desta parábola é bem diferente daquela que consta no Evangelho de Lucas.
Roy é um personagem dado a reinterpretações. Em sua apresentação, cita America: A Prophecy, de William Blake, substituindo um verbo. “Inflamados, os anjos se levantaram” vira “inflamados, os anjos caíram”. Esse “equívoco”, que pode ser considerado um sinal da falibilidade dos androides, também explicaria a característica humana presente neles. Uma máquina não pode analisar uma obra literária e adaptá-la para diferentes contextos num nível simbólico. Um humano, sim.
O próprio Teste de Voight-Kampff, uma versão de Philip K. Dick para o Teste de Turing, usado para definir quem é humano e quem é replicante, desperta um questionamento fundamental: se uma máquina é capaz de desenvolver sentimentos, algo estabelecido por Tyrell numa conversa com Deckard, o Teste pode falhar. Entre Rachael (Sean Young), que acredita ter vivido memórias que não são dela, mas que provocam sentimentos genuinamente seus, e um psicopata, capaz de cometer crimes hediondos sem sentir empatia pelas vítimas, onde está a humanidade do segundo? A nível filosófico, é justo questionar se os replicantes não têm em si a centelha humana, pois foram feitos à nossa imagem e semelhança, da mesma forma que, pela mitologia cristã, temos a centelha Divina, pois fomos feitos à Sua imagem e semelhança.
E essa ambiguidade sobre o que define a humanidade, se a essência ou a existência (Pris, replicante interpretada por Daryl Hannah, cita o “penso, logo existo” de Descartes), cria o melhor mistério de Blade Runner: Deckard também é um replicante? Ignorando comentários de partes envolvidas e analisando apenas aspectos fílmicos, é possível dizer que sim. Sobre seu piano, a partitura do Largo da ópera “Xerxes”, do teuto-britânico Händel. A peça é uma adaptação de uma obra de Giovanni Bononcini, que por sua vez adaptou de Francesco Cavalli. Comparativamente, um replicante é uma adaptação do Homem, que é uma adaptação de Deus. Anteriormente, Rachael questiona Deckard se ele já aplicou o Teste de Voight-Kampff nele mesmo, sendo respondida com silêncio.
E, na pista mais clara de todas, Gaff (Edward James Olmos), o mesmo policial que recrutou Deckard no começo do filme, deixa um unicórnio de origami em sua porta. Deckard sonhara com um unicórnio durante o filme, informação que não divide com ninguém. Da mesma forma que ele sabia das memórias de Rachael porque estas não eram realmente dela, não é absurdo imaginar que Gaff sabia do unicórnio porque aquela memória também fora implantada em Deckard.
Blade Runner é desafiador e exige um raciocínio simbólico refinado de seu espectador para ser compreendido, principalmente por levantar perguntas em vez de oferecer respostas. Num tempo em que pessoas têm desvios cognitivos dos mais simplórios, como confundir Arte com pedofilia, talvez seja inalcançável. Ou fundamental para começar o processo de expansão de mentes pequenas. Prefiro acreditar na segunda.