Plano Aberto

Bohemian Rhapsody

Bohemian Rhapsody filme Queen Rami Malek

A primeira imagem de “Bohemian Rhapsody” é um despertar. Literalmente falando. Freddie Mercury (Rami Malek) acorda na manhã do dia em que a banda Queen se apresentará no Live Aid, concerto beneficente que definirá 13 de julho como Dia Mundial do Rock. A construção de uma figura sacra aparece na escolha por planos-detalhe na mão e nos olhos de Freddie, seu microfone sendo retirado de uma maleta com a solenidade de um cálice de comunhão, seu bigode sendo meticulosamente aparado com uma tesoura e quadros o capturando pelas costas, destacando silhueta e figurino.

O que o filme tenta a partir daí é desconstruir essa figura sacra e reconstruí-la como um ser humano de carne e osso. O problema com esse tipo de proposta é que ela demanda verdade, pois se oferece como tal. E o roteirista Anthony McCarten é um especialista em dourar pílulas. A história de “Bohemian Rhapsody” é empolgante, divertida e, em certa medida, até emocionante. Mas o filme é tão sincero sobre Freddie Mercury quanto é “A Teoria de Tudo”, também com roteiro assinado por McCarten, sobre Stephen Hawking. Os fatos são floreados, perfumados e ressignificados em prol da narrativa. Contido em si, o filme nada tem a ver com isso. Analisado no contexto amplo, decepciona por ser uma biografia “chapa-branca”.

Um belo exemplo é a folclórica discussão entre o baterista Roger Taylor e o restante da banda a respeito da inclusão de I’m In Love With My Car no lado B do single de Bohemian Rhapsody. O episódio é surreal e envolve um indignado Taylor se trancando em um armário para convencer os companheiros, que inicialmente achavam que a própria música era alguma espécie de piada. Por mais que a cena do filme ilustre um conflito, o faz de forma amena, sem explorar características diferenciadoras dos personagens. Esse, inclusive, é um dos principais defeitos de “Bohemian Rhapsody”: à exceção de Mercury, os demais integrantes do Queen são superficiais como uma folha de papel. Figuras como Chrissie Mullen, esposa de Brian May no período coberto pelo filme, sequer são mencionadas. O show de 1984 em Sun City, quando o Queen rompeu o boicote à África do Sul, imposto pelos principais artistas da época como forma de protesto pelo apartheid, segundo “Bohemian Rhapsody”, também nunca existiu.

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Deixando a acuidade histórica de lado, o filme opta por uma história “videoclipada” de Freddie Mercury e do Queen, com a ascensão meteórica da banda sendo contada em poucos minutos. Entre a entrada de Mercury e John Deacon (Joseph Mazzello) na banda de Brian May (Gwilym Lee) e Roger Taylor (Ben Hardy) e o contrato com a EMI Records conseguido pelo produtor John Reid (Aidan Gillen), o Queen faz um – um! – show em um pub. Fica a sensação de que tudo foi fácil demais. No que diz respeito a cenários, todos os shows da banda, na Europa e nos Estados Unidos, parecem ter sido realizados no mesmo lugar, pois o palco é sempre o mesmo. Isso também dificulta o público a dimensionar o turbilhão de sucesso pelo qual o Queen estava passando. Nesse aspecto, “Bohemian Rhapsody” é bem frio, como o é ao retratar os excessos de Mercury, principalmente com drogas.

Não passa despercebido um certo tom moralista, pra lá de questionável, na forma como o filme associa todos os problemas da vida do vocalista às suas relações homoafetivas (o trailer, por dar ênfase majoritariamente na relação de Freddie com a Mary Austin de Lucy Boynton, recebeu críticas por uma straightwashing que não se confirma no produto final), quase que “punindo” Freddie por efetivar sua orientação bissexual. Por incrível que pareça, “Bohemian Rhapsody” tem algumas pinceladas de caretice. Não por acaso, a figura de Austin é quase angelical, oposta à de Paul Prentey (Allen Leech).

Mas estes espinhos cercam uma rosa bonita: os figurinos do filme são perfeitos em recriar a atmosfera dos anos de 1970. A escolha do elenco é uma das mais inspiradas do cinema biográfico recente. E não apenas por Maleki. Os quatro atores principais emulam trejeitos e maneirismos de forma que quase se acredita estar diante do próprio Queen. Por exemplo, Gwilym Lee empunha a guitarra usando o polegar para abafar as cordas graves, exatamente como May. E as partes musicais, ao misturar registros originais da banda com regravações (o cover mais notório de Mercury, o canadense Marc Martel, colaborou com o filme), tornam a ilusão verossímil.

 

Tudo isso é fundamental para o sucesso do ato final, uma recriação quase na íntegra da apresentação no Live Aid, com as canções ganhando um novo sentido após a história contada ao longo de mais de duas horas. Sempre que o filme se dedica a capturar o que foi o Queen e sua música, é empolgante. Seria preciso ter uma pedra dentro do peito para dizer que “Bohemian Rhapsody” não tem um final apoteótico.

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