O que há no cinema de Vincent Gallo? Que olhar um sujeito tão polêmico e anti-progressista tem para mostrar ao mundo? Por suas falas fortes e incisivas, a maioria o vê como um reacionário, um cara ranzinza e insensível. Entretanto, ao assistirmos ao primeiro filme que Gallo dirigiu, Buffalo 66, o que vemos, na verdade, é o oposto. Por trás da figura polêmica, há um olhar sensível, um ser humano cheio de fragilidades, traumas e dores, e que sabe transpor esses sentimentos para a tela como poucos cineastas americanos conseguiram nas últimas décadas.
Em Buffalo 66, Billy Brown (interpretado pelo próprio Gallo, que dirige, atua, produz, compõe a trilha original e escreve) acaba de sair da prisão após cinco anos e sequestra a jovem Layla (Christina Ricci), a obrigando a apresentar-se como sua esposa, Wendy, para seus pais. Billy quer, de qualquer maneira, provar para seus genitores que ele não é um fracasso, que ele não foi um erro. Acompanhamos uma verdadeira história de renascimento para o protagonista (há uma cena, por exemplo, na qual ele parece um bebê, deitado em posição fetal no banco do lado de fora da prisão). Todo esse renascimento se dá em um mundo hostil, austero, onde só figuras tão complexas quanto Brown poderiam compreendê-lo e talvez guiá-lo por esse recomeço.
Como ator, Gallo age como um adolescente durante todo o filme. Billy é um homem aprisionado por seus traumas, que foi definido por seu passado e que vive em função dele – não por acaso, reproduz cacoetes de seus pais, como a mão na testa ou os dedos cruzados, na cena na qual janta na casa deles. Enquanto os dois primeiros terços do filme nos fazem sentir até mesmo raiva do personagem, é bem peculiar ver como esse desgosto por Billy é subvertido no ato final, algo que ocorre justamente por ele estar totalmente exposto e por Wendy conseguir, através do carinho, mostrar sua humanidade.
Em O Céu Mandou Alguém (1948), John Ford foi capaz de pegar três párias da sociedade e mostrar que, até mesmo nas figuras mais vilanescas, é possível encontrar um traço de humanidade e bondade. O mesmo é feito por Gallo em Buffalo 66, que nos mostra como por trás de indivíduos tão detestáveis quanto Billy Brown, pode haver algo admirável e belo. Brown não é essencialmente mal. Ninguém é. Como bem disse a crítica Valeska Silva em seu texto sobre o filme de Ford: “como se colocar no mundo como agente que interpreta o mundo sem entender o ponto em que toda a obra de Ford toca: a complexidade humana?” O mesmo se aplica ao personagem de Gallo em Buffalo 66. É preciso entender a complexidade de personagens como Billy Brown.
Como diretor, Gallo articula esse personagem em choque com o mundo muito bem em uma narrativa que sempre provoca incômodo. Isso ocorre ora pela construção de planos dentro de planos, mostrando como seu protagonista é sobrecarregado de memórias e pesadelos, ora por cenas como a do jantar em família, quando a câmera vai de quina em quina da mesa, trocando a perspectiva e confundindo nosso olhar, criando um estranhamento visual que transforma em imagem o desconforto de cada personagem em tela. Aliás, se esses momentos mais desconfortáveis são os momentos de Billy, os lúdicos são justamente os de Wendy – a dança ao som de Moonchild, do King Crimson, o abraço afetuoso na cama do motel, etc –, fazendo com que a existência desse casal, por si, já seja um equilíbrio. É Layla/Wendy, a figura angelical – e por isso, extraterrena, distante de julgamentos da nossa sociedade – interpretada por Ricci, o único ser que vê no personagem de Gallo a complexidade existente em todo ser humano.
A insegurança e a vulnerabilidade do protagonista são as características que não só definem sua imagem, mas também toda a abordagem formal de Buffalo 66. Em dado momento, o espectador pode sentir que o personagem está prestes a viver qualquer tipo de experiência. Billy surge em tela tão desamparado e desestabilizado, que esperamos desde o suicídio (a máxima violência contra si) a uma chacina (a expressão dessa violência em terceiros). No clímax, quando Brown sai da boate e liga para um amigo dizendo ter desistido de assassinar o ex-jogador do Buffalo Bills (figura na qual ele projeta e desconta tudo de ruim que aconteceu em sua vida), ainda nos perguntamos, por um instante, se tudo aquilo de fato está acontecendo e, caso esteja, se Brown não vai decidir mudar de ideia, jogar tudo para o alto, voltar e cometer o crime.
Isso só acontece porque, durante todo o filme, Gallo conseguiu construir essa vulnerabilidade. Temos aqui um personagem que vem sendo exposto a um processo de destruição por parte de sua família, do mundo e de si mesmo desde que nasceu. Billy é exposto pelo próprio filme como alguém totalmente frustrado e fracassado – as constantes mentiras que ele conta para as pessoas são sempre desmontadas pela própria decupagem do filme –, e que só poderia ser salvo justamente por alguém que o visse além desses fracassos, como um ser humano frágil e indefeso que é. Em alguns momentos, Buffalo 66 encontra espaço até mesmo para jogos metalinguisticos, com Gallo confessando seus pecados para si mesmo diante da câmera.
O personagem de Gallo é tão cativante por ser tão imperfeito quanto complexo. Billy Brown está sempre a beira de um colapso mental, é uma bomba-relógio que só se acalma quando sua impaciência é contrastada com a doçura de Wendy. E não é nada simples entender o amor de Wendy e Billy, já que a história começa simplesmente com um sequestro, tornando tudo um tanto quanto patológico. Talvez ela só esteja tão perdida quanto ele e não saiba como lidar com isso. Talvez por ela ter essa presença tão onírica e angelical na narrativa, consiga vê-lo com um olhar menos preso aos parâmetros sociais, e portanto, menos julgador e mais afetuoso. Como se colocar no mundo como agente que o interpreta sem entender a complexidade moral de personagens como Billy Brown?