São muitos os documentários que falam sobre o momento recente do mundo político brasileiro. Mais recentemente, podemos destacar três: “O Processo”, de Maria Augusta Ramos”, “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, e “Excelentíssimos”, de Douglas Duarte. Se o primeiro se propõe a projetar uma visão neutra – apesar de o simples fato de haver um recorte nas imagens já imprimir uma opinião, mesmo que silenciosa – e fazer um acompanhamento do processo jurídico do impeachment da presidente Dilma Roussef, o segundo relaciona a trajetória política do país com a jornada da família da diretora, e o terceiro tenta analisar a política sob um escopo menor: o dos políticos de baixo escalão.
Poucos documentários, porém, abordam o momento político atual da mais interessante das perspectivas: a do povo e a dos movimentos sociais. Essa é a ideia do documentário de “Cadê Edson?”, longa de Dácia Ibiapina. O filme acompanha os últimos 6 anos do MTST, entrevistando desde líderes aos recém-adeptos do movimento, além de alternar isso com registros sobre o trabalho de um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil. Mesmo que não tenha uma proposta semelhante a das obra de Ramos, Costa e Duarte, “Cadê Edson?” acaba por, em vários momentos, cruzar com estes filmes, já que a trajetória recente de movimentos como o MTST está intrinsecamente ligada às recentes mudanças políticas do país.
O interessante é que a política não é o ponto de partida e muito menos o ponto final. Como um dos representantes do movimento fala, suas ideias não têm “a ver com política”. Claro, é sabido que todo ato é um ato político, mas o distanciamento da política ao qual o membro do MTST se refere é a política partidária, os líderes de Brasília. Movimentos como o MST e o MTST são constantemente vistos apenas como badernistas ou braços de partidos políticos, e o documentário de Dácia não só mostra o outro lado, como explora também a humanidade dos adeptos dos movimentos e a fragilidade deles diante de um tecido social que não os comporta.
Para reiterar o isolamento social desses movimentos, Dácia é astuta ao alternar seus registros com registros de terceiros como os da própria força policial e os da televisão. No ato de abertura, por exemplo, a montagem alterna entre cenas de manifestações veementes do MTST com cenas de manifestantes da direita celebrando uma vitória política como se fosse carnaval. É nesse jogo de opostos que “Cadê Edson?” encontra seu diferencial. Se “Democracia em Vertigem” muitas vezes soa como uma visão da elite da esquerda, que contrapõe líderes políticos ou, no máximo, figuras do PT com os Bolsonaro e o PSDB, “Cadê Edson?” busca sempre uma visão mais aprofundada para essa dicotomia política do Brasil atual.
A forma de Dácia de filmar corrobora esse aprofundamento. Em vez de uma direção distante, calcada apenas nos relatos – que já são suficientemente fortes –, a cineasta entra nos movimentos, acompanha seus atos de perto. Busca não explicar, mas nos inserir no âmago dos movimentos do MTST para que sintamos a paixão com que aquelas pessoas se dedicam às suas ideias. Interessante também é como Dácia recorta imagens de arquivo jornalístico e não só as utiliza como contraponto conteudístico, mas também as trabalha como referência formal oposta ao seu próprio recorte.
Se Dácia faz questão de mostrar os fortes elos familiares entre os membros dos movimentos e seus filhos, a diretora também projeta em tela os registros de políticos e forças policiais afirmando que removerão manifestantes de suas ocupações para “libertar crianças feitas de refém”. A construção midiática exposta mostra como, bem distante dos conflitos políticos sob escopo da elite, há um lento e não tão silencioso projeto para desumanizar membros de movimentos como o MTST.
É na capacidade de Dácia de retratar tão bem o abismo que separa os movimentos sociais dos sem-teto do restante da sociedade que “Cadê Edson?” prospera. O documentário acerta em cheio ao expor como o Estado, através da polícia e da propaganda, constrói nesses movimentos uma imagem que os faz parecer separados do Brasil. É um processo que, ao olhar do documentário, vai além do isolamento social, mas chega também à desumanização e no fortalecimento da ideia de que aqueles indivíduos que lutam por seus direitos sequer são cidadãos brasileiros. Faz parecer que uma tropa policial invadindo uma ocupação para atirar em trabalhadores é semelhante a um exército patriota expurgando invasores maliciosos.
A cereja do bolo é o fato de “Cadê Edson?” também não se ater a uma figura central, mesmo que haja, sob uma análise de estrutura mais clássica, um protagonista. O filme pula de personagem em personagem, e utiliza as vivências de cada um como peça para montar o cenário proposto por Dácia. O documentário, portanto, além de apresentar uma perspectiva não tão comum para a estrutura política e social brasileira, ainda o faz dividindo a narrativa de forma episódica, permitindo que cada um dos trabalhadores entrevistado acrescente ao quadro final. O grande feito de Dácia, que torna “Cadê Edson?” especial, é ter seu olhar, o expor, mas também compartilhar seu espaço com os protagonistas de um movimento tão importante. Um gesto grande tanto da perspectiva humana, quanto da artística.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.