Na Zoologia, criaturas carnívoras são assim chamadas por necessitarem de carne para sobreviver. Não o fazem por maldade, mas por instinto de autopreservação. É da natureza do carnívoro matar para não morrer. Pode parecer que o leitor entrou na página do “Discovery Channel” por engano, mas o filme de Jérémie e Yannick Renier trata precisamente da natureza humana. Ou, indo direto ao ponto, o quanto alguém é capaz de sacrificar a própria natureza em prol de outras pessoas.
Mona Barni (interpretada brilhantemente por Leïla Bekhti) busca o sonho de ser uma grande atriz, enquanto sua irmã mais nova Samia (Zita Hanrot) já alcançou este status. “Carnívoras” estabelece, em pouco mais de cinco minutos, as principais tensões a serem desenvolvidas durante a projeção: Samia é tudo o que Mona sempre quis ser e Mona se vê obrigada a lidar com esta dura realidade porque, além de fracassar nas tentativas de conseguir trabalhos, mora com a irmã, o cunhado Manuel (Bastien Bouillon) e o sobrinho Tom (Octave Bossuet). Como sua carreira não decola, acaba sendo uma governanta na casa da irmã, fazendo as vezes de babá enquanto Samia se prepara para um papel com o renomado diretor Paul Brozek (Johan Heldenbergh).
O primeiro ato de “Carnívoras” desenvolve este jogral de sentimentos pela ótica de Mona com muita eficiência. Uma briga entre Samia e Manuel fica desfocada em segundo plano, com a câmera focando na reação de Mona, no quanto ela se sente desconfortável por estar ali. Ao mesmo tempo, ela se voluntaria para ajudar Samia a repassar suas falas no filme de Brozek, deixando implícita sua necessidade de habitar este mundo do Cinema, mesmo que numa posição inferior. A paleta de cores sempre tem ao menos um elemento azul (quando não tem um filtro sobre todo o quadro), demonstrando essa melancolia de Mona, o quanto a própria protagonista se sente desperdiçando a vida naquela situação e, ao mesmo tempo, incapaz de sair dela.
Indiretamente, “Carnívoras” mostra o quanto essa realidade também é dura para Samia, incapaz de gerenciar carreira e família de forma satisfatória. Isso leva à conclusão do ato um dilema moral para Mona, a primeira chance verdadeira da personagem de se descolar da irmã e ter um brilho próprio. Mas isso a coloca numa situação eticamente questionável. Com uma escolha de quadros estáticos, a composição de cada cena ganha destaque, junto com a forma como os atores se valem da área captada pela câmera. As atuações são o forte do filme, destacando-se Bekhti pela desenvoltura com que ela alterna momentos de pequenez em um canto da tela com outros quando ocupa praticamente todo o quadro. Sua transição na linguagem corporal e na forma como se veste ou arma o cabelo ajudam a mostrar o que a personagem quer, mas também seu conflito interno para decidir fazer.
Dessa forma, “Carnívoras” caminha para uma inevitável conclusão onde a natureza de sua protagonista é finalmente revelada. O fato do filme ter uma duração um pouco menor que a média (82 minutos) ajuda a torná-lo dinâmico, pois essa transição quase se torna um beco sem saída. Mas é no clímax que esta pequena queda no ritmo é compensada e a resposta – surpreendente e perturbadora – vem sem suavidade. As coisas são como são e o instinto de autopreservação sempre vence.