Carvão

Carvão

Um estranho implode o lar da família brasileira

Michel Gutwilen - 28 de outubro de 2022

Antes de realizar Carvão, seu primeiro longa-metragem, Carolina Markowicz passou por alguns curtas, entre eles o mais bem sucedido em termos de visibilidade de público e de festivais, O Órfão (2018)¹. Pode ser proveitoso ter como ponto de partida uma aproximação entre estes dois projetos, porque algumas premissas e interesses da diretora tiveram uma continuidade. Em termos de premissa, O Órfão é um filme sobre um menino órfão com aspectos LGBTQIA+ que, em uma de suas inúmeras tentativas de ser adotado, é rejeitado ao passar por um processo de teste com a nova família quando percebem sua natureza. Enquanto isso, Carvão é sobre uma família tradicional brasileira (casal heterossexual com filho) que vive no interior e recebe uma recompensa para abrigar temporariamente um fugitivo estrangeiro dentro de seu lar, com a relação entre essas quatro pessoas se desenvolvendo. 

De imediato, há uma semelhança de premissa: a entrada de corpos estranhos em um ambiente tradicional que se choca com os valores ali presente e chacoalha todas as relações que existem ali, não só de maneira direta, mas provocando uma implosão na interação entre os próprios membros da casa. Inclusive, este é um exercício de panela de pressão em um microcosmo representativo da sociedade que encontra ecos em diferentes espaços e contextos através da história do Cinema, desde a presença do mendigo Boudu, Salvo das Águas (Jean Renoir, 1932), passando pelos desconhecidos de Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968), O Estranho (Orson Welles, 1946), O Estrangeiro (Satyajit Ray, 1991) o estrangeiro de À Flor do Mar (João César Monteiro, 1986), os empregados domésticos de Mulheres Diabólicas (Claude Chabrol, 1995) e Parasita (Bong Joon-ho, 2020), o militar de O Hóspede (Adam Wingard, 2014), até o homem sem memória do recente filme brasileiro A Mesma Parte de um Homem (Ana Johann, 2020)².

Voltando aos paralelos dentro da filmografia de Markowicz, tanto seu curta quanto seu longa se respondem pelo corpo e pela atuação. As ações narrativas são poucas para tirar conclusões, assim como os diálogos, cabendo aos atores serem o próprio centro gravitacional da imagem, em que tanto os mistérios quanto as respostas estão girando ao redor deles. Só que se em O Órfão, o protagonista Jonathan simplesmente age como ele é, sem adotar uma persona, os personagens de Carvão, estão a todo aparecendo em tela como aquilo que eles não são, interpretando para si e para os outros. Deste modo, estamos diante de dois exercícios de um elefante branco na sala que todos tentam ignorar, em que os personagens (em O Órfão, os pais adotivos não conseguem abordar o assunto frontalmente) nunca conseguem dizer o que realmente estão pensando, mas internalizando, deixando para a imagem apenas o não-dito do silêncio. 

Por isso, talvez a principal diferença entre as duas obras seria que enquanto no curta-metragem  O Órfão o olhar de Markowicz é mais íntimo e não tenta criar barreiras para que Jonathan seja descoberto e compreendido pelo público a partir do ator mirim de Kauan Alvarenga, em Carvão há múltiplas tentativas de criar bloqueios, tanto de roteiro quanto de montagem. Para o bem e para o mal, os principais acontecimentos que impactam na narrativa de Carvão acontecem fora do filme, existem à margem dela, ou seja, boa parte das principais ações são omitidas, enquanto o que de fato vemos nele são os espaços entre as ações, os momentos dúbios, com o espectador sendo imposto a esta perspectiva de uma janela limitada, cabendo a ele tentar encontrar respostas nas sutilezas nas atuações.

Assim, em Carvão, o jogo proposto por Markowicz na direção de atores é fazer com aqueles personagens não se deixem serem lidos facilmente, seja para o espectador, seja para os outros personagens, com seus olhares, tons de voz e presença física apenas deixando indícios de que guardam algum segredo. Inclusive, isto não é uma lógica aplicada apenas ao trio estranho-marido-mulher, mas que se alastra para todos os personagens da história, do filho pequeno e a enfermeira até aos outros que possuem pequenos papéis, como a amiga da mãe, na tensa cena em que ela insiste para ver o idoso, ou o próprio padre. A partir deste clima de instabilidade, a movimentação do filme se torna um espaço de imprevisibilidade quanto às próximas ações daquelas pessoas. 

Enquanto em uma primeira superfície, Carvão é um exercício do gênero de suspense a partir desta escalada gradual de tensão dos relacionamentos dentro de uma bolha, com seus personagens sufocados entre as paredes daquela casa em que nenhum deles está confortável com aquele convívio, a presença estrangeira na casa é também uma forma de desvelar as falsas aparências de todos ali, servindo como olhar mediador do público, que passa a descobrir as certas contradições naquela aparente família tradicional brasileira e os costumes que eles seguem, principalmente pelo choque entre os valores religiosos com os impulsos mais carnais. 

Dito tudo isso, apresentadas as principais características, fico com a seguinte provocação: será que Carvão é realmente tão complexo assim ou é só um filme com muita névoa que, uma vez dissipada, não resta muita coisa, além da constatação das contradições da sociedade brasileira a um nível mais básico? É claro que uma obra não pode ser culpada por sua recepção crítica, mas basta ver em qual direção a maior parte dos textos, inclusive este, está indo. Parece-me um filme falso-difícil, já que todos chegam à mesma conclusão temática da obra. No fim, fica a impressão de que, assim como seus personagens, Carvão está tentando esconder ser algo a mais do que realmente é, forçando artifícios narrativos e de mise-en-scène para acabar sobrevivendo pelo debate como algo mais complexo do que realmente é.

¹- O curta está disponível no próprio Vimeo da diretora para ser assistido (https://vimeo.com/377193784)

²- Não tive a oportunidade de ver todos os filmes mencionados, faltando-me neste presente momento os de Pasolini e o de Ray, mas faço a citação por saber sobre o que são e saber que são importantes referências deste subgênero.

Texto originalmente escrito para nossa cobertura do Festival do Rio 2022. Acompanhe aqui.

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