Casa Grande (2014) faz parte do que parece ser um ciclo de filmes que captura a vida e os dramas da classe média alta brasileira durante a década de 2010. Precedido por O Som ao Redor (2011) e sucedido por Que Horas Ela Volta? (2015), o longa de Fellipe Barbosa captura bem esse zeitgeist, e compartilha acertos e erros com os exemplos supracitados.
O jovem Jean serve como avatar para o adolescente que sempre teve uma vida fácil. Sua família faz parte do nouveau riche carioca: se os clãs do dinheiro antigo do Rio de Janeiro, com seus sobrenomes prestigiosos, são historicamente associados à zona sul da cidade, as famílias que ascenderam socialmente a partir dos anos 2000 encontram seus lares em alguns bairros específicos da zona oeste. Em Mate-me Por Favor (2015) – que pode ser visto como outro expoente desse ciclo – é a Barra da Tijuca o espaço que delimita as ações do filme, e aqui cabe a esse papel o Itanhangá, onde a família de Jean vive em um luxuoso casarão construído do zero a mando do pai de Jean (a titular “Casa Grande”, em uma analogia tão autoevidente à obra freyreana que quase dispensa qualquer menção).
A forma como a família é construída logo se delineia sem muita dificuldade, e os arquétipos estabelecidos para cada integrante da mesma ao início não sofrem elaboração pra além do que está em primeiro plano: o filho mimado e com noções parcas de como é a realidade fora de seu universo particular que compreende a casa e o colégio prestigioso, a irmã que rivaliza com ele em notas e o chantageia por dinheiro, o pai que canaliza lugares-comuns e preconceitos da classe média alta brasileira e a mãe que também não foge muito disso. Os serviçais da propriedade, a princípio, pouco mais são que suas funções: a doméstica, o motorista, a cozinheira.
A presença dessas figuras na casa causam algumas justaposições discursivas, como um diálogo no qual, à suntuosa mesa de jantar da família, discute-se a importância das cotas em universidades brasileiras, enquanto a doméstica Rita janta na área de serviço, sozinha, virada para a parede. A mesma personagem, inclusive, é desde o início alvo de avanços sexuais por parte do protagonista, que eventualmente sucede em ter com ela relações sexuais. A dinâmica entre Casa Grande e Senzala (novamente o mote freyreano) não poderia ficar mais explícita do que isso.
Se Rita é nordestina, porém não negra, é de se perguntar o porquê de filmes como Casa Grande e Que Horas Ela Volta? nunca colocarem uma mulher negra no papel da doméstica – talvez receio da reafirmação de que as relações sociais do Brasil ainda não superaram o período colonial soar por demais pesada caso explicitada dessa maneira (e dentro dessa dinâmica, a única personagem negra do filme é Noêmia, cozinheira da casa). Também nordestino é Severino, motorista particular da família com quem Jean possui uma relação amistosa, de mentoria e cumplicidade. É para Severino que Jean pede conselhos acerca de como se aproximar romântica e sexualmente de garotas durante os trajetos que fazem para o colégio São Bento, um dos mais tradicionais do Rio de Janeiro.
A demissão de Severino é a rachadura no encouraçado familiar que serve para expor o seu interior podre. Hugo, pai do clã, é enquadrado em um processo trabalhista e constata que não tem como pagar. Todo o padrão de vida da Casa Grande, na verdade, está por um fio, e a opulência não passa de uma fachada, raspa do tacho do tempo das vacas gordas. Mesmo que isso não seja relacionado de forma direta pelo discurso do filme, é possível situar a narrativa no período histórico no qual o longa de Fellipe Barbosa está inserido: foi a partir do início dos anos 2000 que a classe média cresceu no Brasil e a classe média alta alcançou um novo patamar de vida, e em meados da década de 2010 essa classe média alta começou a sentir um decréscimo no padrão de vida conquistado poucos anos antes. A gradual falência da família de Jean reflete esse momento da história recente do país.
Na medida em que a situação na Casa Grande se agrava, a estrutura que a sustentava segue desmoronando. Após a demissão de Severino, chega a vez da doméstica Rita, que é despedida quando a mãe da família descobre, nas coisas da empregada, fotografias íntimas tiradas dentro do ambiente doméstico dos empregadores. Sobrecarregada após a saída de Rita e a três meses sem receber seu salário, pouco depois chega a vez da cozinheira Noêmia se demitir, sob alegação de que recebera propostas de emprego mais benéficas dentro da mesma vizinhança. Ao início a família dispunha de três empregados, ao fim já não tem mais nenhum.
Jean, ingênuo, vê-se confuso com essa situação e responde à maneira típica do adolescente que sempre teve tudo na vida: de forma reativa, com uma violência pusilânime. Seu conflito com a família é agravado quando ele começa a se relacionar com Luiza, estudante do colégio Pedro II que conhece em um ônibus na volta da escola, e que eventualmente é apresentada aos familiares do jovem. Luiza representa o contraponto aos valores familiares da classe média alta ideologicamente conservadora (porém não obstante vendida como liberal, ponderada) da qual a família de Jean faz parte. Quando o patriarca da família está em uma confraternização na casa de um corretor com quem pretende negociar a venda da Casa Grande, surge o tópico do sistema de cotas nas universidades federais brasileiras. Na discussão, que pende para uma visão desfavorável em relação à política de reparação histórica, Luiza sai em defesa das cotas.
A jovem surge como uma defensora do pensamento progressista, servindo filmicamente como a personagem que gera debates e reflexões quando confronta o que, tanto no filme quanto na sociedade brasileira, representa o status quo. Casa Grande não vai muito além dessa dicotomia: a família de Jean e seus associados representam o conservadorismo, e Luiza o progressismo. O protagonista do filme vê-se no meio desse embate ideológico. Se nesses momentos o longa de Fellipe Barbosa beira o didático, com situações e diálogos desprovidos de uma sutileza que deixaria as situações estabelecidas menos arquetípicas e mais verossimilhantes, é possível dizer que essa abordagem direta é feita nas melhores intenções, para que as questões abordadas sejam mostradas de forma clara e sintética. Essa falta de sutileza também marca presença em outras produções desse “ciclo de filmes da classe média alta”, mas talvez aqui fique mais evidente porque basicamente dá a tônica de cada diálogo, de cada sequência de Casa Grande. Luiza, enquanto personagem, é um artifício discursivo.
É com ela que Jean dá seus primeiros passos na tentativa de sair do mundo contido no qual havia vivido até então, transitando pelos espaços aprovados pela família dentro dos círculos da classe média alta, para experimentar, por exemplo, a ida a um forró no bairro da Lapa (posteriormente, vai além e chega a levar a namorada a um motel, o que dentro do escopo da adolescência abastada e superprotegida carioca configura um ato de rebeldia imensa, e é proporcionalmente confrontado pela família). O protagonista sabe que se alinha mais ao pensamento de Luiza, mas não consegue, inicialmente, romper de forma efetiva o vínculo familiar.
Jean ensaia romper esse vínculo em diversos momentos do longa, mas só consegue fazê-lo nos momentos finais: após desistir de uma prova de vestibular (quando, pressionado pela família, pretendia fazer três cursos universitários simultaneamente) no meio da mesma, Jean entra em uma van, sem avisar os pais, e segue com ela até o ponto final do transporte. Seu objetivo é encontrar Severino, que após ser demitido por sua família seguira no ofício de motorista, agora no ramo do transporte alternativo.
Após ser informado de seu endereço, adentra a casa onde o homem que procura vive junto com Noêmia. Encontra nos dois o amparo que procura naquele momento de estresse e confusão. Posteriormente, vai de forma independente a um forró, onde encontra Rita. Em um curto período de tempo, reencontrou três pessoas com quem possuía relações de afeto (e não obstante, de poder) características dos filhos dos patrões em relação aos empregados da casa. A presença de Severino, Noêmia e Rita representa um porto seguro para o jovem em uma situação na qual ele se encontra alienado do afeto no convívio familiar. Rita, para além disso, segue sendo um interesse sexual.
É na casa de Rita que o filme termina, com a ex-doméstica dormindo enquanto Jean, nu, senta-se na janela para fumar. Enquanto Rita trabalhava em sua casa, os avanços do rapaz sobre ela eram aceitados de forma resignada, com protestos, graças à posição que ele ocupava e à sua insistência juvenil. Agora, a relação carnal fora consumada após o rompimento formal desse vínculo, de forma descontraída e aliciada pela lábia e pela bebida. Assim como no posterior Que Horas Ela Volta?, em Casa Grande o filho pródigo da classe média alta encontra naqueles que o serviram mais conforto (seja maternal/afetivo, seja sexual) do que entre as pessoas de seu meio (familiar e/ou social).
Na história de Jean, ao se revoltar contra a família, abdicar do futuro universitário deixando a prova do vestibular e fugir para o convívio de Severino, Noêmia e Rita, o adolescente expressa sua rebeldia. Afinal, para a classe média alta (brasileira, em geral, e carioca, em específico), o maior ato de rebeldia possível para um adolescente é frustrar as expectativas familiar. Jean faz isso de forma semiconsciente. Desde o início, mesmo tirando notas boas, já não se mostra um estudante exatamente dedicado à proporção que se espera de um estudante que pretende ingressar em três cursos superiores de forma simultânea. Busca pequenos respiros de autonomia nas festas que frequenta, mas essa busca pela liberdade não demora a ser sufocado pela rigidez paterna. No fim, abre mão até mesmo da fidelidade a Luiza. Encontra como única forma real de se alcançar a liberdade um rompimento total com tudo o que é mediado por sua família.