“a eficácia da arte não consiste em transmitir mensagens, dar modelos ou contramodelos de comportamento ou ensinar a decifrar as representações. Ela consiste sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe.”
(Jacques Rancière)
Casa Izabel, de Gil Baroni, estabelece e se organiza ao redor de uma situação muito possibilitadora: um grupo de homens de meia idade, crossdressers, que se reúnem numa casa afastada no auge da ditadura militar para dar vazão às suas fantasias. Uma das regras desse espaço, verbalizada mais de uma vez na narrativa, é não levar para lá elementos da vida externa dos personagens. Na Casa Izabel do título, eles assumem novas identidades, femininas, e devem se manter nelas o tempo todo.
Está aqui a maior fragilidade do filme, pois Baroni e o roteirista Luiz Bertazzo quebram essa regra para introduzir comentários mais abertamente políticos, sobre as identidades desses homens e o contexto histórico, que, além de óbvios, posicionam o olhar de Casa Izabel num distanciamento crítico bastante limitador dos caminhos abertos inicialmente. Isso é especialmente decepcionante considerando que a narrativa consegue, apesar dos juízos de valor que acaba mobilizando, criar um microcosmo verdadeiramente instigante, com personagens potencialmente fascinantes.
Potencialmente porque esse movimento centrífugo do filme parece sempre tentar sabotá-los, torná-los menos complexos do que poderiam ser, já que símbolos de algo que precisa ser criticado (a hipocrisia do homem médio conservador). Por sua vez, os atores trabalham no sentido inverso, impregnando essas figuras de humanidade e, sobretudo, presença. Seus corpos em cena são vetores de uma força dramática muito grande, de um magnetismo que extrapola o que o enredo pretende fazer com eles.
Nesse sentido, mesmo que todos estejam ótimos, é Luís Melo quem mais se destaca, sobretudo em sua aparição final. A personagem Izabel, interpretada por Melo, vinha até esse momento sendo usada como emblema máximo da decadência generalizada de sua casa, numa dinâmica pouco interessante e restrita com outras duas figuras (a funcionária do local e seu filho adotivo). Quando ela enfim surge no espaço principal do drama, de fato como um fantasma que, apesar da fragilidade, domina a situação com gestos, olhares e comentários mordazes, o filme sobe de nível absurdamente.
É aqui que Baroni demonstra maior controle dos elementos da mise-en-scène, do tempo da ação ao registro dos corpos pela câmera – é verdade que há outro momento, bem anterior, também muito bem encenado pelo diretor: aquele do sexo oral seguido de um assassinato involuntário. Pena que Casa Izabel já esteja próximo do fim e que a conclusão acabe se dando num gesto catártico por demais esperado, acrescido do esquecimento injustificado de um personagem que sequer precisaria existir (o refém).