Em um sentido não-qualitativo, mas meramente descritivo, diria que Cena do Crime é um “anti-thriller”, no sentido de que sua estrutura narrativa, que é sobre um assassinato e sua posterior investigação, rejeita os elementos costumeiros do gênero e trabalha com uma espécie de esvaziamento (desglamourização?) desse modelo. Assim, o filme existe curiosamente no espaço-tempo oposto do que estamos acostumados a ver em um thriller investigativo, residindo nas elipses entre os grandes acontecimentos, direcionando seu olhar para os espaços periféricos ao crime em si.
Deste modo, o núcleo estrutural — o assassinato em si, a fuga do assassino, a investigação dos detetives e a captura do criminoso — existe de maneira elíptica ou fora do plano. Por outro lado, cenas teoricamente “banais”, que em um filme narrativo convencional seriam até elipses, existem aqui e são muito prolongadas temporalmente. Se em um thriller hollywoodiano poderia se esperar que, logo após uma testemunha do crime chamar a polícia para ir até o local, haveria um corte para os detetives chegando até ele, elipsando toda a trajetória até lá, em Cena do Crime vemos a lentíssima manobra feita pelo carro de polícia para sair do estacionamento da delegacia.
Neste sentido, poderia até ser possível ir para um caminho de leitura de que o diretor Pedro Tavares está evidenciando uma certa burocratização e monotonia do que seria uma verdadeira investigação policial na vida real, diferente da tensão frenética que os filmes vendem para gerar entretenimento, mas eu diria que essa talvez seja uma possibilidade mais acidental de análise, com o verdadeiro foco residindo em uma outra direção. Afinal, ao invés de olhar para o crime em si, Tavares se foca em praticamente fazer um mapeamento do microcosmo do condomínio de classe-média em que o assassinato acontece.
Assim, partindo do pressuposto de que todo filme não deixa de ser uma investigação por si só, a partir da escolha do que será observado pela câmera, ao decidir direcionar o olhar para a arquitetura daquele local, o que ocorre é também uma transformação do crime em si como um “macguffin”. Portanto, em uma inversão do que se espera de um thriller, o verdadeiro objeto de interesse da investigação se torna uma exploração fantasmagórica destes espaços condominiais e o vazio que reside neles. Neste sentido, o olhar de Tavares se volta para explorar certos padrões estruturais deste local: grades e portões por todo lado; os ambientes enclausurados de uma garagem, elevador ou escada; e a presença de câmeras de segurança. Se a violência do crime pouco é mostrada ao espectador, ela se transmuta para a própria brutalidade arquitetônica dos espaços.
Porém, a escolha de que espaços olhar é apenas parte do empreendimento de mise-en-scène realizado por Tavares. Como a ação acontece predominantemente no extracampo (sonoramente e imageticamente) e os diálogos em cena mal podem ser escutados, na verdade, é como se o filme retirasse dos seus detetives a tarefa da investigação e jogasse ela no colo do espectador, que aqui deve assumir uma função ativa. Logo, a narrativa elipsada e econômica funciona como uma espécie de quebra-cabeça que deve ser montado pelo espectador através do seu olhar para a mise-en-scène vestigial. Sob esse aspecto, os espaços ganham um sentido novo narrativo: eles não são exatamente nem “início” ou “fim” da ação, mas constituem o “meio”. Os personagens estão constantemente em um jogo de in e out do plano, que está ali desde antes da chegada deles e permanece após as suas saídas. A cada cena, existe um jogo de expectativa diante da possibilidade de uma ruptura frente a essas regras, em que não se sabe exatamente o que vai acontecer em cada ambiente, nem quem vai aparecer nele ou se alguma ação vai acontecer ou não. É aqui que existe a verdadeira ressignificação da ironia do título: todas as cenas constituem verdadeiras “cenas do crime”, cabendo ao espectador investigar cada uma delas.
Não menos importante — aliás, talvez a reflexão mais importante de todas —, é possível fazer uma correlação entre a escolha pela “anti-ação” e sua relação direta com a exploração dos espaços vazios do condomínio de classe média. Crucial a este entendimento é a contextualização da cena aparentemente desconexa em que há uma voz em off de uma jornalista falando sobre o julgamento de um caso envolvendo a Lei Maria da Penha e a decisão machista do juiz. Sendo o assassinato de Cena do Crime implicitamente também um feminicídio, tudo parece se ligar. Ao esconder a violência direta do filme, é como se existisse uma tentativa farsesca de manutenção da normalidade naquele local, como se nada tivesse acontecendo. A mise-en-scène aqui é como se fosse regida por uma força que tenta manter a manutenção do civilidade e segurança do condomínio. Uma mulher morreu naquele ambiente, mas não há ninguém para socorrê-la, a não ser a outra vizinha, também mulher, que faz a denúncia para a polícia (também em off), após escutar gritos, mas não vai lá por temer se botar em risco. Conclui-se que o condomínio é apenas um espaço de alienação e isolamento, principalmente para as mulheres, cujos gritos de socorro não são escutados por ninguém.
É por isso que, no fim, o criminoso é preso, Tavares decide encerrar seu filme com dois planos “extras”, que são mais importantes ao seu tema. Primeiramente, um plano geral daquele espaço condominial, decorado para o Natal, com uma música católica, como se a vida normal farsesca continuasse para todos aqueles que vivem ali. Como se dissesse: “tudo normal por aqui, circulando”. Por último, um plano que faz o movimento de descida, partindo de um dos prédios para uma repleta escuridão, acompanhado de um grito ruidoso, como se desse um último lembrete ao espectador de que por baixo daquela fachada de normalidade existe muitos problemas escondidos.