Plano Aberto

Construindo Pontes

Em tempos em que general da ativa faz ameaça velada ao Supremo Tribunal Federal e fica por isso mesmo, o choque de ideias – e de gerações – em “Construindo Pontes” ganha novos significados. O documentário de Heloísa Passos mostra como a ditadura militar brasileira mudou sua família e, pouco mais de 30 anos após seu término, ainda é uma barreira intransponível entre ela e seu pai, Álvaro.

O filme usa como ponto de partida a submersão do Salto de Sete Quedas, outrora as maiores cachoeiras do mundo e principal ponto turístico brasileiro, com o objetivo de construir a usina hidrelétrica de Itaipu. A obra do regime militar garante ainda hoje o abastecimento de eletricidade para o Sul e o Sudeste brasileiros, ao custo de uma transformação irreversível da natureza nacional. Passos associa a perda das Sete Quedas à perda da própria família, dando ênfase à sua analogia com uma longa tomada dolly, que dá uma dimensão do tamanho da transformação: onde antes estavam cachoeiras com o dobro do volume de água das Cataratas do Niágara, hoje há uma imensidão uniforme.

Este é o pano de fundo de “Construindo Pontes”. A partir dessa jornada de autoconhecimento, sobre si e sobre seu país, Heloísa começa a montar o jogral de memórias da infância com o pai, um engenheiro que trabalhou em inúmeras obras do período militar e, ao contrário da filha, vê esta fase da História do Brasil como “a única época em que houve projeto de país”. Álvaro não é a pessoa mais articulada do mundo e não traz nada além de sensos comuns para a mesa do debate. Em uma das discussões, justifica os assassinatos políticos cometidos pela ditadura – que ele chama repetidamente de “Revolução” – como “inevitáveis num período de guerra”.

Heloísa, tampouco, oferece algo diferente à luz do que argumentos já conhecidos sobre a capacidade do regime de ocultar casos de corrupção, censurar a imprensa e retirar as liberdades civis da população. Assistir a “Construindo Pontes” não é diferente de passar um Natal em família e presenciar a briga entre os folclóricos “tio reaça” e “prima petralha”, essas figuras tão caricatas que já perderam qualquer simbolismo abstrato, sendo apenas representações literais daquilo que já aparentam ser.

Não é este o foco do documentário: Heloísa Passos está preocupada em exibir um retrato da sua relação com o pai, alguém que ela sistematicamente apresenta como seu oposto perfeito. Inclusive, um dos pontos negativos do documentário é o excesso de diálogos expositivos, reforçando algo que já está claro para o espectador, como quando ela narra em off, sem necessidade, que “ele diz ‘moça’, eu digo ‘presidenta’; ele diz ‘impeachment’, eu digo ‘golpe'”.

Independente do “lado” que o espectador tome na discussão (pessoalmente, estou 107% com Heloísa), é inegável o frescor narrativo que Álvaro concede à história contada. Por não seguir um roteiro (ficam claras as tentativas de Heloísa em guiar o próprio filme), por ter um excelente timing cômico (como quando ele elogia a beleza do juiz Sérgio Moro) e por não se desequilibrar emocionalmente nas discussões (de forma recorrente, Heloísa contesta aos berros os absurdos do pai, defendidos com uma naturalidade quase cínica).

Essa dinâmica remete a um sentimento com o qual a maioria das pessoas se identifica: nossos pais são capazes de nos desestruturar e nos enfraquecer. Podemos estar certos, mas fracassamos no confronto direto porque a figura genitora intimida. É preciso uma dose generosa de honestidade e desprendimento para se expor de forma tão vulnerável no produto final do próprio filme. “Construindo Pontes” não maquia a dificuldade que a família Passos tem para coexistir e nem a capacidade do pai de desequilibrar a filha. Mas também guarda um espaço muito doce a Álvaro, não apenas deixando as discussões que ele “vence” no corte final, como explicitando a preocupação de um pai no melhor para a filha, como no maravilhoso diálogo em que ele “ensina” a filha a rodar um documentário.

Parafraseando o Coringa de “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, “Construindo Pontes” é o encontro de uma força imparável com um objeto inamovível. Não espere conclusões sobre o que é “a” verdade ou mesmo um convencimento de parte a parte. Nisso, o título do documentário de Passos é perfeito: pontes permitem que se vá de um ponto a outro, mas não mudam esses pontos de lugar. Pai e filha continuarão eternamente concordando em discordar. Algo bastante saudável, me atrevo a dizer.

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