Plano Aberto

Cora Coralina, Todas as Vidas

Cora Coralina Todas as Vidas

Inspirado livremente no livro “As Raízes de Aninha”, Cora Coralina, Todas as Vidas é um retrato poético-documental da vida de uma das grandes escritoras da Literatura Brasileira. Melancólica, estoica e inspiradora, a doceira que debutou nas livrarias aos 75 anos representa o Brasil no que ele tem de melhor. Coube ao diretor Renato  Barbieri reproduzir em seu filme esta essência transgressora.

Usando o Cinema como um seminário de Literatura, Todas as Vidas lança mão de inúmeras narradoras para representar um traço característico da obra de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas: alter egos. Anna escrevia sobre si protegida pela máscara das personas Cora Coralina e Aninha. À primeira, uma projeção do como a própria autora se via na vida adulta; à segunda, a pureza intocada de uma criança observadora e apegada às histórias passadas de geração em geração. A escolha por colocar diferentes mulheres para ler seus poemas (Camila Márdila, Walderez de Barros, Teresa Seiblitz, Zezé Motta, Beth Goulart e Maju Souza) aprofunda a ideia de que Cora não escrevia sobre si, mas sobre as mulheres. Suas aventuras, lembranças, dissabores e sonhos, a força necessária para resistir à dureza da vida.

Aninha é a persona inocente, pura, imaginativa e irreverente de Cora Coralina, seu lado sonhador.

Todos os esforços de Barbieri têm como objetivo representar visualmente os elementos inerentes à obra de Cora Coralina. Autora famosa pela minúcia ao reconstituir fatos do passado, muitos dos planos de Todas as Vidas têm longa duração, partindo do geral para o close. A “casa velha da ponte”, o mundo imaginário de Cora, é fotografada em tons de sépia, como que um sonho. A formação de Anna como indivíduo, produto de seu tempo e sua imaginação, é ilustrado pela própria forma como o diretor conta sua história: uma mistura entre o documentário e a fantasia, com as representações dos poemas intercaladas com análises técnicas de sua escrita, registros históricos documentados e relatos daqueles que a conheceram.

Todas as Vidas mostra uma Cora Coralina que, lamentavelmente, é desconhecida pela maioria dos brasileiros. Com a maior parte de sua bibliografia publicada postumamente, causa certo embaraço que tão pouco se saiba sobre a mulher por trás das palavras. Antes (muito antes) de ser escritora ou do termo “empoderamento feminino” ser cunhado, Cora estava fugindo com seu amado montada em um cavalo para começar uma nova vida. Viúva, se negou a desistir da emancipação. Mudou profundamente cada lugar por onde passou, defendendo políticas ambientalistas e filantrópicas em Jaboticabal e Penápolis. Quando o peso de seus encargos pareceu pesar sobre os ombros, lembrou-se daqueles que se encontravam em situação pior e prometeu “nunca mais dizer que está cansada”.

Comparados aos acertos, os problemas de Todas as Vidas são menores. O grande destaque negativo vai para algumas declamações dos poemas. Enquanto Barros, Seiblitz, Motta e Goulart assimilam e transmitem verdade nas suas interpretações da obra de Cora Coralina, Camila Márdila e Maju Souza (importante fazer a ressalva de que Souza tem apenas 18 anos) não conseguem esconder que estão lendo os poemas enquanto interpretam, algo que às vezes é amplificado pela edição, que mantém tomadas em que o olhar das atrizes vai e volta da “cola” dos textos. Em um filme que busca imergir o espectador na realidade da protagonista, tais quebras são sensíveis.

Ainda existe, em pleno século XXI, uma tendência a menosprezar feitos de grandes mulheres. A sociedade prepara os jovens para admirarem e se espelharem em homens. Não há espaço para o amor desinteressado a pessoas como Cora, que vendeu doces de dia e escreveu livros à noite, sustentou os filhos sem ajuda e jamais esqueceu dos marginalizados, representados na personagem Maria Pobre. Cora não é um exemplo apenas para mulheres, mas para qualquer um que tenha um sonho e sofra reveses na jornada da vida. O intercâmbio cultural é saudável e bem-vindo, mas não deveria significar o menosprezo pelo que o Brasil produz de bonito para o mundo. E não há melhor forma de começar a corrigir isso do que conhecendo melhor Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, Cora Coralina, Aninha. Uma pessoa forte. Uma mulher forte.

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