Plano Aberto

Coringa

Coringa 2019 Joaquin Phoenix Todd Phillips

As discussões sobre os motivos para o Coringa ser um dos principais vilões da ficção são quase tão antigas quanto o próprio personagem. As opiniões divergem, mas é consenso que, sem ele, o Batman não seria o herói icônico que é e vice-versa. Porque ambos são, em múltiplos níveis, os dois lados de uma mesma moeda. Esse tema foi explorado brilhantemente por Alan Moore em “A Piada Mortal” e conclui a mais recente “Cacofonia”, de Kevin Smith. Nesse sentido, o filme de Todd Phillips se propõe um imenso desafio logo de saída: é possível falar do Coringa sem mencionar o Batman?

A solução de Phillips passa pelo outro “personagem” dessa dinâmica: sua Gotham City, claramente inspirada na Nova York dos anos da Crise Fiscal, tem a mesma aura de loucura de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem com distúrbios mentais, estrutura familiar precária e dificuldades financeiras. Como o filme demonstra nas suas duas horas de duração, o Coringa não poderia ter surgido sem a contribuição de Gotham.

Esse cenário de caos social (ilustrado por notícias de TV, como Frank Miller fizera em “O Cavaleiro das Trevas”) levanta outra questão interessante: o destino do Coringa seria diferente se ele tivesse o saldo bancário da família Wayne? Ao longo dos 80 anos nos quadrinhos, pouco foi dito sobre a condição paupérrima do personagem antes de sua ruptura, sendo a já citada obra de Moore a exceção mais famosa. O contrário também se aplica: fosse Bruce Wayne pobre, a sua resposta ao assassinato dos pais seria viajar pelo mundo para se aperfeiçoar no combate ao crime?

Pelas semelhanças com a atualidade (o mundo está se tornando um lugar cada vez menos “pobre-friendly”), “Coringa” aborda esses temas de forma mais do que respeitosa: o filme é cuidadoso ao contar sua história. Por exemplo, Fleck não enlouquece nos desdobramentos de seus infortúnios. Desde o início, a audiência sabe que ele tem distúrbios mentais severos, o que impede (ao menos deveria impedir) qualquer tentativa externa de racionalizar suas decisões. Longas passagens ocorrem dentro da mente de Fleck, o que dá ao roteiro liberdade para construir ambientes onde a loucura do protagonista pode ser recompensada. Mesmo a icônica risada do Coringa recebe um tratamento para lhe tirar qualquer glamour. A principal diferença entre a obra de Phillips e a esmagadora maioria dos filmes que retratam psicopatas “pisando em ovos” é que as suas precauções acrescentam camadas narrativas.

Arthur Fleck ter um subemprego, mesmo com distúrbios mentais, implica que ele deve ser explorado e mal remunerado. A fotografia de Lawrence Sher, ao contrário do que fazem “11 de 10” filmes que misturam fantasia e realidade, trabalha todas as cenas com a mesma paleta de cores. Alguns delírios de Fleck são identificáveis pela megalomania, mas a maior parte é factível, o que torna impossível definir de antemão se uma cena está acontecendo ou não. E quando Fleck ri (possivelmente o personagem sofre de um transtorno chamado labilidade emocional), o espectador não ri junto. Ao contrário, sente a mesma angústia do protagonista, incapaz de reagir adequadamente ao ambiente que o cerca. É quase um aviso de que algo horrível está prestes a acontecer. Algo nada engraçado.

Há de se enaltecer o trabalho de Joaquin Phoenix. O ator construiu risos histéricos diferentes entre si, tornando possível identificar rapidamente o que há por trás deles, seja angústia, medo, dor ou fúria. Sua linguagem corporal vai se tornando gradativamente mais desenvolta conforme a persona do Coringa surge e suprime a de Fleck. Um paradoxo alinhado à principal simbologia do filme: escadas marcam a jornada entre os dois estados de espírito do protagonista, a mais icônica sendo a que o leva até o apartamento onde vive com a mãe (a excelente Frances Conroy).

Sempre que Arthur está subindo uma escada (o que normalmente simboliza uma jornada positiva), há um destino desagradável. Mas ao fim das descidas (uma analogia direta para a completa deterioração mental de Fleck), as mudanças são positivas (indicadas por portas que dão para exteriores iluminados, trilha sonora harmônica etc.), como se o abraço à loucura fosse a verdadeira libertação do personagem.

As acusações de que “Coringa” pode estimular o comportamento incel, apesar de não serem infundadas, são injustas: o incel vai se apropriar do símbolo à revelia do seu verdadeiro significado, mas Todd Phillips conseguiu, apoiado pelo trabalho brilhante de Phoenix, criar uma história muito particular para servir de exemplo para um coletivo. Um verdadeiro estudo de personagem. Indigesto, mas irresistível.

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