A Segunda Guerra Mundial foi, em vários aspectos, uma guerra total. Na mobilização de recursos humanos e tecnológicos, no engajamento de militares e civis, na centralidade de uma ideologia destrutiva que colocou em prática o processo de extermínio de um povo. “Além da Linha Vermelha” (1998), de Terrence Malick, se dedica a humanizar alguns daqueles que, na guerra real, eram parte ao mesmo tempo dispensável e fundamental dessa totalidade. Não que lançar um olhar humano para conflitos extremamente violentos como esse seja algo novo no cinema. Mas Malick faz isso optando por um recurso, aí sim, não muito usual em filmes do gênero: o de apresentar a guerra como um fenômeno de muitas vozes. Essa escolha se concretiza na presença de oito narradores que, em over, conduzem a narrativa e produzem reflexões sobre questões que interessam ao diretor.
Não há, portanto, um protagonista em “Além da Linha Vermelha” que absolutize em si a experiência bélica. Essa surge fragmentada, vivida em diferentes dimensões: a religiosa, a da saudade da amada deixada na terra natal, a da busca por glória na carreira militar, a dos questionamentos sobre ordens e decisões tomadas no campo de batalha, entre outras. Juntas, elas até formam uma espécie de uníssono no questionamento das razões para a guerra, mas não criam uma narrativa coesa em que os vários personagens exercem funções que se complementam. Há uma desorganização consciente no filme, não à toa Malick começa sua história no meio da ação e mesmo de uma dinâmica dramática chave (a atitude do soldado Witt, interpretado por Jim Caviezel, em relação a seus compromissos militares) e a encerra sem concluir qualquer arco. A não ser o do próprio Witt, talvez. Personagens (geralmente interpretados por atores conhecidos) entram e saem de cena sem que sejam dadas maiores explicações sobre suas origens e destinos.
Nesse sentido, mas também em outros, “Além da Linha Vermelha” é quase um anti-“O Resgate do Soldado Ryan” (1998). O filme de Steven Spielberg, lançado alguns meses antes do de Malick, começa com um velho senhor chorando num cemitério de veteranos da segunda guerra. Ao final, após um longo flashback ambientado na libertação da França, em junho de 1944, a narrativa retorna ao presente, amarrando a cena inicial com todo o resto e explicando quem é o tal senhor e o porquê de seu choro. Esse tipo de amarração definitivamente não interessa a Malick. Além disso, Spielberg insere “O Resgate do Soldado Ryan” num discurso teleológico do conflito, que busca dar sentido aos sacrifícios feitos nos campos de batalha. Foi para salvar um modo de vida, uma ideia de liberdade e sociedade encarnada na bandeira dos Estados Unidos que tremula no primeiro e no último planos do filme.
Malick não se prende a esse tipo de olhar. Suas questões com a guerra transcendem embates ideológicos. Diferentemente também de Clint Eastwood, que em “A Conquista da Honra” (2006) denuncia a apropriação, pelo Estado, do sofrimento dos soldados e sua transformação em propaganda, o diretor de “Além da Linha Vermelha” questiona o ato de guerrear em si, em qualquer tempo, contra qualquer inimigo, com qualquer justificativa. Seria essa propensão à violência parte da essência humana? O filme parece entender que sim, daí as referências à brutalidade presente na dinâmica da própria natureza.
Mas, ao mesmo tempo, Malick contrapõe a aparente trivialidade da missão empreendida pelos personagens (tomar uma colina dominada pelos japoneses durante a batalha de Guadalcanal, no Pacífico) e a efemeridade de suas lutas e existência à acachapante impressão de permanência que caracteriza a ilha em que transcorre a ação. A natureza aparece ali em estado bruto, sobrevivendo com certa indiferença aos homens que se autodestroem. As árvores do lugar talvez tenham milhões de anos. O crocodilo que aparece na primeira cena remete a uma presença pré-histórica – não à toa, alguns anos depois o diretor recorreria literalmente à pré-história para refletir sobre a jornada humana na Terra, em “A Árvore da Vida” (2011).
Aliás, é interessante observar o lugar que “Além da Linha Vermelha” ocupa na filmografia de Malick. Esteticamente, o filme marca uma continuidade em relação a “Cinzas no Paraíso” (1978), ou um aprofundamento das experiências visuais e sonoras feitas nessa obra-prima setentista: a câmera que segue os personagens em ações fragmentadas, por vezes “bailando” entre eles; a narração de conteúdo existencialista que às vezes comenta a cena, mas que em outras elucubra sobre os sentidos da vida. Nesse sentido, “Cinzas no Paraíso” e “Além da Linha Vermelha” estão no meio do caminho entre a frontalidade narrativa de “Terra de Ninguém” (1973) e a liberdade poética de “A Árvore da Vida”. O filme de guerra de Malick se aproxima mais desse segundo polo sobretudo em sua hora final, após a referida missão de tomada da colina ser cumprida e os soldados passarem a simplesmente vagar pela ilha de Guadalcanal.
No entanto, “Além da Linha Vermelha” guarda semelhanças com os dois primeiros filmes de Malick na opção do diretor pelo ponto de vista de pessoas que são conduzidas por outras, que não seguem com total liberdade seus próprios rumos. Em “Terra de Ninguém”, a voz over que guia a narrativa é a de Holly (Sissy Spacek), adolescente retirada de casa e praticamente carregada para uma vida de crime por seu namorado, Kit (Martin Sheen). Em “Cinzas no Paraíso”, a narradora é a pequena Linda (Linda Manz), irmã do protagonista Bill (Richard Gere), levada para diferentes regiões do país como consequência das constantes fugas do sujeito. Curiosamente, na última cena do filme, com Bill já morto, a garota passa a seguir outra personagem, sua colega de orfanato. As oito vozes que narram “Além da Linha Vermelha” são de militares em condição de subordinação, algo explicitado nas próprias situações que compõem a diegese. Isso vale mesmo para o Tenente Coronel Tall (Nick Nolte), que, apesar de pressionar violentamente o Capitão Staros (Elias Koteas) a cumprir uma ordem suicida, surge, logo no início, bajulando um general (John Travolta), postura necessária para ele enfim ter a chance de comandar tropas numa grande batalha.
Ao menos nesses seus três primeiros filmes, portanto, Malick se mantém coerente no propósito de dar voz a mulheres e homens frequentemente calados pelos mais fortes que os cercam. No caso de “Além da Linha Vermelha”, essa escolha reitera sua vontade de estilhaçar a totalidade da segunda guerra mundial, construindo um olhar para o conflito que é doloroso, claro, mas também delicado, transbordante de uma humanidade manifesta no desejo de viver que cada personagem-narrador carrega.