Este filme conta com todos os elementos para fazer um fim de semana de estreia assombroso: é o retorno da Franquia Harry Potter após 5 anos; vem na esteira de um novo livro (leia minha crítica aqui e aqui); é estrelado por Eddie Redmayne, ator que virou, com méritos, sensação em Hollywood; conta no elenco com atores conhecidos pelo grande público como Colin Farrell e Jon Voight (e Ron Perlman num cameo maravilhoso) e outros que, apesar do perfil indie, são tão carismáticos a ponto de tornar o material de divulgação encantador.
Duvida?
David Yates continua como diretor, uma decisão justa pelo seu bom trabalho em Relíquias da Morte. Mais um filme no patamar de “Animais Fantásticos” e o perdoarei definitivamente pelo terrorismo psicológico que foi Enigma do Príncipe. Sim, este é o melhor filme da franquia até aqui e há uma explicação lógica para isso: adaptar um livro para o cinema é muito mais complexo do que conceber uma história do zero. Se havia alguma dúvida da capacidade de JK Rowling para escrever numa nova mídia, ela acaba com 5 minutos de projeção. O “estágio remunerado” com Jack Thorne em Criança Amaldiçoada lhe deu o domínio na arte de escrever roteiros. Com isso, Yates pôde desenvolver seu trabalho de forma fiel às ideias de Rowling, pois trabalhou diretamente com ela.
O filme se impõe três desafios grandiosos, que consegue superar com maestria. Ele se passa nos Estados Unidos, em 1926. Como retratar uma comunidade bruxa até então desconhecida pelo público, em um período histórico tão iconográfico como os Roaring Twenties e não fazer menções a Harry Potter, que só viria a nascer mais de meio século depois? Com storytelling, direção de arte e confiança no público.
JK Rowling nunca dá ao público um 4, mas um 2+2. Já sabemos que Gerardo Grindelwald foi o segundo maior bruxo das trevas de todos os tempos, atrás apenas de Voldemort. Uma sequência de abertura com capas de jornais nos diz que Grindelwald está construindo um reino de terror. É o bastante para a conexão. Em tempos de cinema mastigado, com os conceitos da trama sendo explicados uma vez a cada 10 minutos, é um voto de credibilidade incomum e louvável. Na abertura, também somos contextualizados sobre o que acontece nos Estados Unidos da bruxidade, a vida no anonimato, os esforços do Congresso Mágico dos Estados Unidos da América (Macusa) para ocultar a existência de bruxos dos No-Majs, a nomenclatura ianque para trouxa, e o temor pelo ódio e a perseguição.
Isso é fundamental para que “Animais Fantásticos” funcione como um filme autônomo. A história é boa. A suposição inicial de que seria uma versão mágica de Um Príncipe em Nova York não se confirma. Quando Newt Scamander chega a Nova York (numa sequência que lembra O Imigrante, de Charlie Chaplin), sabemos que há muito mais do que uma mala mágica que teima em abrir. Henry Shaw Jr. (Josh Cowdery) é o político conservador que trabalha para pôr fim à revolução moral da primeira metade da década, financiado pelo seu pai, um magnata da mídia interpretado por Jon Voight. Figurino, Maquiagem, Cenografia e Produção de Objetos garantem que em nenhum momento se questione que estamos nos anos 20. A pesquisa minuciosa também torna os bruxos americanos tipicamente americanos, sem sombra de dúvida. São pequenos detalhes, como elfos domésticos lustradores de varinhas na entrada da Macusa (em qualquer filme você verá engraxates em estações de trem ou na Bolsa de Valores, por exemplo), ou a investigação de Newt precisar da ajuda de um mafioso bem informado. São recursos que estão a serviço do roteiro, e não o contrário. Tudo isso ajuda a tornar o ambiente crível. A política clássica americana do “atire primeiro, pergunte depois” também dá o tom da Macusa, uma versão mágica da CIA, com um Medidor de Ameaça de Revelação dos Bruxos idêntico ao Relógio do Juízo Final da Guerra Fria.
Por falar em credibilidade, a Direção de Arte merece mais aplausos pelos animais criados. Nundu, arpéu, erumpente, occamy, pássaro-trovão, o famoso pelúcio e tantos outros que não consigo lembrar para citar não são “sombrios e realistas” (estamos falando de um filme sobre MAGIA), mas em nenhum momento parecem falsos. São exatamente como o título do filme diz: fantásticos. Se a Fotografia vira refém da praga hollywoodiana de tons escuros, o interior da mala de Newt é soberbo, tanto pela composição de quadros transpirar magia em cada poro quanto pelo uso de cores que evocam savanas, florestas e nevascas sem nenhuma suspensão de credibilidade.
Vão vender muitos bonecos.
O caminho mais fácil para ressuscitar uma franquia bilionária seria criar personagens que emulassem aqueles já conhecidos. Mas os protagonistas de “Animais Fantásticos” têm identidades próprias. Newt é a materialização da inocência, da pureza e do amor ao meio-ambiente; Porpentina é obstinada, mas não como Hermione, pois na maioria das vezes não sabe o que está fazendo; Queenie não tem a inocência infantil de Luna, pois é uma mulher; e Jacob é um no-maj fora do estereótipo festivo da época, um ex-soldado da Primeira Guerra que queria abrir uma padaria e não pôde porque o banco não quis lhe emprestar dinheiro. Os co-protagonistas têm seus traços bem delimitados e não servem como dispositivos para realçar traços de Newt. Cada história tem sua importância.
Ezra Miller reedita seu papel de Precisamos Falar Sobre o Kevin com um Creedence que me fez entender perfeitamente o que ele quis dizer ontem, no Tapete Azul da première: “meu desafio hoje é não chorar”. Sua mãe Mary Lou, líder da associação Nova Salem, é a transcrição literal de uma homofóbica que tem um filho gay. Como disse anteriormente, essas questões estão a serviço do roteiro e não o oposto, mas a mensagem de Rowling é, mais uma vez, clara. O grande vilão do filme não é Grindelwald (a polêmica com Johnny Depp será um problema para a franquia no futuro, pois a participação dele neste filme é mínima e não compromete em nada o restante), mas o próprio ódio que nutrimos contra nossos semelhantes.
Em um dia no qual tentamos entender porque um pai perseguiu e executou a tiros o filho que ocupava a Universidade Federal de Goiás, “Animais Fantásticos” serve como um manifesto em prol do respeito, da tolerância, da convivência harmônica e do amor. Em tempos tão sombrios, quando figuras estapafúrdias como Donald Trump chegam à Casa Branca catapultados pelo discurso de ódio contra minorias (não tenho dúvidas de que Mary Lou votaria nele), Rowling segue sendo uma voz dissidente, pregando que a nossa melhor chance para nos exterminarmos é exatamente propagar o ódio contra minorias. Mais uma geração de crianças irá aos cinemas e sairá de lá se questionando porque o ódio gratuito existe. Este esforço hercúleo para salvar o mundo deveria render a Rowling um Nobel da Paz.
Teria o meu voto.