Manchester à Beira-Mar

Manchester à Beira-Mar

Matheus Fiore - 15 de outubro de 2016

Nem tudo na vida passa. Por mais estruturada emocionalmente que a pessoa seja, há tragédias que levam indivíduos às ruínas. Tragédias que interrompem a ordem natural das coisas e ceifam a paz de espírito dos envolvidos. Manchester à Beira-Mar trata justamente de situações deste porte. Mais especificamente, de como um homem aceita, convive e sobrevive com sua imutável realidade.

Aqui acompanhamos Lee Chandler (Casey Affleck), um zelador rude e mal humorado que constantemente recebe reclamações de seus clientes por seu patrão. Lee também mostra ter plena consciência de que é roubado por seu chefe, mas também não expressa o menor incômodo, apenas usa como moeda de troca para manter seu emprego. Aqui já vê-se a construção de um personagem que não possui nenhum traço de amor próprio.

O filme tem seu primeiro ponto de virada quando o irmão do protagonista, Joe (Kyle Chandler), morre, e fica com Lee a guarda de seu sobrinho, Patrick (Lucas Hedges). A partir do acontecimento, a obra passa a fazer uso de uma fantástica montagem alternada que reveza as memórias do protagonista com os acontecimentos do presente. Com enorme sensibilidade o longa conduz o público à conhecer a mente do personagem para, então, quando já inserido em seu âmago, compreender suas escolhas.

Um dos maiores acertos da montagem de Manchester à Beira-Mar é não subestimar seu espectador, revezando os flashbacks com a história principal sem necessidade de apontar sempre que o filme muda de época. As lembranças, aliás são muito importantes não só para contar a história dos personagens mas para mostrar a diferença de tom no relacionamento deles ao longo do tempo, principalmente entre Lee e Patrick.

Essa alternância nas cenas proporcionada pela montagem quebra o ritmo do filme diversas vezes, poeticamente simbolizando a ruína psicológica do protagonista. O roteiro de Kenneth Lonergan também acredita na inteligência do espectador e evita explicações  desnecessárias, deixando muitas conclusões corretamente subtendidas. O foco no arco dramático do protagonista é nítido, afinal, o filme é um estudo de sua pessoa, ainda que haja espaço para quase todos os personagens se destacarem.

Seu sobrinho, Patrick,  é extremamente eficiente ao conduzir o espectador a desejar que este more com seu tio, que apesar do testamento deixado por Joe, se recusa a adota-lo. Além de bem escrito,  o estudante/jogador de hóquei/basquete/guitarrista/conquistador é muito bem interpretado por Lucas Hedges, que esculpe um adolescente preso numa montanha-russa de emoções resultante da situação de sua família. De forma sutil, o bom personagem ainda serve como alívio cômico entre os momentos mais dramáticos e impedindo que o filme se torne excessivamente denso emocionalmente.

Há uma fantástica cena onde um personagem janta com um casal que, supostamente, superou um problema passado. Há um pequeno conflito, o espectador percebe a tensão do casal e não há nenhuma explicação quanto ao motivo do incômodo tom. A direção e as expressões dos personagens são capazes de conduzir o clima do ambiente simplesmente pelo silêncio e pelos enquadramentos que sugerem desconforto. Ao mesmo tempo, o roteiro atinge seu ápice ao evidenciar, sem diálogos óbvios ou brigas, que o problema ainda existe, sendo apenas mascarado. Manchester à Beira-Mar é um filme de intensos sentimentos expressos em pequeníssimos detalhes, e cenas como esta agregam muito à simplicidade da narrativa.

A direção é tão fabulosa quanto o roteiro, e também de Kenneth Lonergan. Fazendo uso do slow motion para evidenciar e prolongar expressões nos personagens, também ajuda a sintetizar passagens que não precisam  de explicação por diálogos. Sempre encontrando Lee curvado ou diminuído no plano, mostra como o personagem sequer consegue olhar nos olhos enquanto conversa com desconhecidos. Ainda é possível interpretar como uma metáfora o ganha-pão do protagonista: Lee não consegue arrumar sua “casa” então vive de arrumar a dos outros. Uma ocupação mental e também uma forma de compensação por seu passado.

Na construção do clima desolado do protagonista, também é eficiente a fotografia de Jody Lipes,  que encontra na baixa e cinzenta iluminação uma forma de projetar os sentimentos do personagem quando este não expressa nenhuma emoção (o que é recorrente). Lee é praticamente uma pedra, quase nunca expondo o que sente, dando apenas pequenos  vislumbres de seu estado mental por olhares vagos e diálogos com um timbre de voz irregular, quase choroso.

Aliás, há vários momentos em que, mesmo não expressando tantos sentimentos, o personagem emociona o espectador com sua insegurança, olhando sempre pra baixo, com a coluna curvada, não sabendo onde posicionar as mãos e gaguejando. A cena da delegacia e a do encontro com a personagem de Michelle Williams, Randi, são verdadeiras aulas de atuação. Se houver justiça, tanto Michelle quanto Casey Afleck serão indicados aos Oscar de melhor atriz coadjuvante e melhor ator respectivamente.

A obra é acima de tudo humana, com uma fria e realista visão de que, mesmo que o mundo continue girando, há pessoas que deixam suas tragédias as consumirem. É um filme que consegue contar sua história com imagens, sabendo quando poupar o espectador de grandes explicações, valorizando e potencializando elementos que poucos longas sabem trabalhar. Tendo como  espinha dorsal a genial atuação protagonista, o longa não só é um dos melhores do ano como um dos melhores da década produzidos por Hollywood. É um filme que define Kenneth Lonergan como um grande e sensível artista, ao mesmo tempo que tira Casey Affleck do posto de reles coadjuvante do cinema americano. Manchester à Beira-Mar está aqui para faze-lo, junto de Michelle Williams, entrar para a história.

 

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