O terror, assim como a comédia, depende de uma reação física para ser bem sucedido. Pouco importa porque estamos com medo de algo. Importa é se estamos com medo de algo. Existem inúmeras formas de se provocar essa reação. Stephen King (autor de obras como “IT: A Coisa”, “Carrie: A Estranha” e “Novembro de 63“) lista três: o Nojo, o Horror e o Terror. Dario Argento trabalha com uma combinação de todas elas em seu “Suspiria”. Algumas escolhas conscientes e outras verdadeiras gambiarras ajudam a criar um filme desconfortável, inquietante. Incongruente.
A tipografia dos créditos iniciais de “Suspiria”, criada pelo Studio Mafera, tem uma classificação humanista. Isso significa que ela busca simular o resultado da caligrafia, da mão escrevendo sobre o papel. Da mesma forma que a inclinação da caneta é irregular durante a escrita, a espessura de cada letra desta fonte também é irreguar. Repare como, nas curvas, ela é muito maior do que nas retas. Isso cria uma sensação de movimento. Associada à trilha sonora da banda Goblin, as fontes parecem se mexer, fazendo algo que não deveriam fazer (e, de fato, não fazem. É uma ilusão).
A fotografia altamente estilizada de Luciano Tovoli torna o filme ainda mais “estranho”. Logo na primeira cena, quando Suzy (Jessica Harper) entra em um táxi, o plano do taxista mostra um céu azul; no banco de trás, onde ela está, o exterior é magenta. As duas imagens são inconciliáveis. O céu não pode estar azul e magenta ao mesmo tempo. Isso escancara o isolamento de Suzy em um país estrangeiro. Quando o táxi entra numa pista subterrânea, a câmera não acompanha o movimento, sinalizando que a protagonista está figurativamente descendo para um submundo.
Isso é o que Stephen King chama de “Terror”: uma substituição completa do entorno real do protagonista por um falso. Suzy sai de Nova York e vai a Freiburg para aprimorar seu balé. São duas cidades mais parecidas entre si do que se ela fosse estudar em Nairóbi. Mas há algo fora do comum. E não conseguir identificar o quê torna a sensação angustiante. As pessoas na Academia Tanz são iguais a ela, mas agem de uma forma estranha. Ao mesmo tempo que Suzy não tem um motivo aparente para se assustar e fugir, ela não consegue ficar à vontade. E assim fica o público. Desconfortável.
A dupla dublagem pela qual “Suspiria” passou na pós-produção também ajudou nisso. Com a captação local de áudio precária e sabendo que o filme seria totalmente em inglês para o mercado externo e em italiano para o interno, Argento decidiu que seria mais rápido filmar se cada ator simplesmente entregasse suas falas no seu idioma nativo, já que esta Torre de Babel ficaria fora do produto final. Como Jessica Harper está dublando a si própria, Suzy vira o “centro de realidade” do filme. A cada interação sua com alemães, italianos etc., contudo, a falta de sincronia entre os lábios e os sons que saem deles fica ainda mais evidente. Dividindo uma experiência pessoal: levei quase uma hora para ver os primeiros 20 minutos do filme, pois buscava informações sobre qual era a versão “oficial” dele a cada cena em que um ator falava com uma voz que não era sua.
Sobre o “Horror”, Stephen King fala do anormal. Coisas que são de um jeito diferente do natural, tornando-se assustadoras por isso. Isso fica claro no primeiro evento abertamente sobrenatural do filme, quando Pat (Eva Axén) é assassinada em condições que desafiam a física. Também pode ser sentido na composição de Daniel (Flavio Bucci), um cego que orbita a pena, o desconforto e o riso. Em um ambiente tão hostil e imprevisível, um cego que não demonstra nenhuma segurança na cegueira pode ser tanto um alvo fácil quanto um assassino perfeito. E todos os esforços de “Suspiria” são para deixar as possibilidades em aberto. O espectador nunca sabe do que ele é capaz, o que o impede de relaxar nas cenas com ele.
É interessante ver como as cores em “Suspiria” funcionam para reproduzir o estado de espírito das cenas. As cores são “impossíveis”. Quando as alunas da Tanz vão dormir juntas, o apagar das luzes vem acompanhado de um vermelho berrante. Isso não faz sentido, mas retrata com perfeição a presença maligna no ambiente. Suzy regularmente passeia por dependências da Tanz inundadas de um verde nauseante, enquanto o azul domina as cenas protagonizadas por Sara (Stefania Casini), cor esta com a menor velocidade cromática. Essa escolha indica, num nível subconsciente, que Sara é a personagem com o maior conhecimento sobre os eventos macabros da academia, o “último estágio” antes da resolução.
Por último, mas não menos importante, o “Nojo”. Para King, a ideia de “algo verde e gosmento pegando no seu braço” pode conduzir a uma reação de medo. Isso é visto nas cenas gráficas das mortes, sempre com efeitos práticos e uma estética pendendo para o gore. Também está presente na icônica chuva de vermes. O trabalho de design de produção, principalmente nos cenários e nos figurinos, cria um contraste ainda maior entre normal e anormal. Entre belo e grotesco.
É preciso admitir que “Suspiria” não tem uma trama das mais coesas. A ideia de um psiquiatra que estude bruxaria de forma científica é, no mínimo, ridícula. Informações vitais para Suzy desvendar o mistério são descobertas de maneiras igualmente ridículas. Alguns diálogos são dignos do selo “pornô do entregador de pizza” de qualidade. No geral, o clímax do filme também tem uma resolução muito simples e rápida. Mas também é preciso admitir que Dario Argento não conduz sua narrativa por meio de história, mas de atmosfera. Ele busca, a cada set piece, conduzir as reações fisiológicas do público, o que consegue com maestria. Num nível psicológico, a própria ideia de que uma situação tão inverossímil representa uma ameaça real torna a experiência ainda mais assustadora.
Afinal de contas, o terror, assim como a comédia, depende de uma reação física para ser bem sucedido. Pouco importa porque estamos com medo de algo. Importa é se estamos com medo de algo.