Mesmo na época em que o cinema se torna, aos poucos, um produto mais enlatado e genérico, ainda há inúmeros exemplares de diretores que mantém uma veia autoral, esteja essa veia presente em bons ou maus filmes. Citando apenas cineastas contemporâneos, podemos lembrar da simetria e uso de cores pulsantes em Wes Anderson e das técnicas retrô (como o esquecido zoom) e diálogos corriqueiros de Quentin Tarantino, como também da cansativa paleta dessaturada de Zack Snyder, sempre acompanhada pelo excesso de câmera lenta. Nessa turma de “autores”, temos Terrence Malick com sua “câmera viva”. Diferente de alguns casos, porém, Malick não utiliza sua estética diferenciada apenas para diferenciar-se da média. Em filmes como A Arvore da Vida e Voyage Of time, suas histórias foram beneficiadas pela direção inquieta e montagem rebelde e documental. De Canção em Canção não é diferente, e traz mais um belo exemplo do uso de sua arrojada linguagem em prol da narrativa.
Acompanhamos Faye (Rooney Mara), jovem que busca em seus romances e abstrações artísticas se desprender de seu vazio existencial. Acompanhada sempre por seu chefe, Cook (Michael Fassbender) ou pelo namorado, BV (Ryan Gosling), vemos a interação da personagem com a dupla e as ramificações dos relacionamentos entre eles, que incluem participações de Cate Blanchett e Natalie Portman. Por trás da simples trama, Malick trabalha temas como a solidão, a liquidez da vida moderna e a busca por laços que justifiquem a existência humana, mais uma vez utilizando um tema que, em mãos erradas, até poderia se tornar um desinteressante melodrama, mas que por sua bagagem acaba tornando-se um filme rico em forma e conteúdo.
Em De Canção em Canção, a forma inusitada de filmar de Malick contribui muito para a narrativa. A já mencionada câmera viva, que não se mantem presa ao eixo e ronda e entrepassa seus personagens, não só nos imerge na história como retrata o mundo líquido e disperso habitado pelos melancólicos personagens. Cada um com seus problemas, todos trazem enorme carga dramática, sendo essa expressa ou não, buscando refúgio justamente na arte e nos pequenos momentos de amor que encontram com seus parceiros (daí o diálogo que faz referência ao título da obra: de canção em canção, de beijo em beijo). E em curtos diálogos, o roteiro ainda é capaz de fortalecer a ideia de vazio que permeia a vida dos personagens. Cook, por exemplo, reitera sua tristeza ao dizer que “está tudo à venda. Títulos, honras… Nada disso existe”, enquanto outro personagem admira a grandiosidade de sua casa.
A parceria com o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (que já trabalhou com o diretor em filmes como Rei de Copas e A Árvore da Vida) novamente traz bons frutos. O aproveitamento da luz natural ajuda a estabelecer uma estética vívida ao filme, bem como a manutenção de lentes grandes angulares, que dão o efeito “fish eye” tornando as bordas do quadro tortas, trazem uma certa leveza ao visual do filme, dando a impressão de que estamos em suas memórias, e não acompanhando suas histórias enquanto elas se desenrolam. Aliás, nisso a montagem também tem grande mérito, já que além de inserir cenas fora da ordem cronológica da trama, tornando a narrativa mais dispersa, ela também corta de um momento para o outro sem muitas vezes deixar os diálogos ou acontecimentos terem uma conclusão, fortalecendo a caracterização lúdica do longa.
Por meio de seu elenco, Malick consegue evocar diferentes sensações no espectador, retratando os personagens sempre com as mesmas ferramentas. Enquanto com BV, Faye está sempre dançando, brincando e se divertindo, o que estabelece o sentimento de liberdade trazido pela companhia da figura interpretada por Ryan Gosling, algo perceptível quando a protagonista diz ter se lembrado dele ao observar pássaros (um dos mais fortes símbolos de liberdade) no céu ou quando notamos o casal junto com um quadro de Rimbaud ao fundo, poeta que teve vida marcada pela liberdade e inquietude. Já com Cook, a abstração da realidade chega através de instintos mais primitivos, da sexualidade. Há também as cenas nos shows que o personagem produz, sempre com som alto, entorpecendo os sentidos dele e de quem o acompanha. Apesar de muito eficientes, essas ferramentas acabam se repetindo de forma exaustiva e quebrando o equilíbrio e a sutileza que caracterizavam a obra até sua metade.
Conforme os conflitos emergem, a fotografia impacta ao utilizar planos em contra-luz para retratar os personagens consumidos por sombras, simbolizando sua desorientação ou fraqueza diante do desconhecido ou de suas perdas. Também destaca-se o uso de uma câmera ainda móvel, mas mais contida, quando os personagens estão em harmonia na natureza, nos mostrando como o distanciamento da modernidade da cidade é capaz de trazer uma tranquilidade que nunca é alcançada distante das montanhas e pedras por onde BV e Faye passeiam. Essa relação, aliás, lembra muito o que Bergman fez com o casal protagonista de Monika e o Desejo. E há ainda na narração (quase sempre de Faye) uma curiosidade. Mesmo que a protagonista narre quase toda a projeção, há passagens onde outros personagens assumem a condução do filme, o que podemos ver como uma forma de mostrar que todos ali possuem suas dúvidas e fraquezas – Cook, por exemplo, se sente uma pessoa ruim quando vê Faye e BV juntos, pois é incapaz de sentir e expressar paixão da mesma forma que eles. Além disso, o fato de observamos o filme, em certo ponto, sob a ótica do “vilão”, é importante para evitar o maniqueísmo e mostrar que, com suas qualidades e defeitos, todos os personagens de De Canção em Canção são humanos, frutos da sociedade na qual cresceram no período em que vivem.
Utilizando a arte como escapismo do vazio da vida de seus personagens, De Canção em Canção é uma viagem às memórias de pessoas atormentadas pela angústia da própria existência. Um estudo humano com forte viés filosófico existencialista, que utiliza uma história simples, que contada com maestria técnica e temática, se torna uma obra memorável. Parte do público pode até achar o diretor Terrence Malick um mala pretensioso, mas não pode negar que o americano sabe imprimir sua assinatura e faze-la ter impacto em suas formas de contar histórias. E se isso por si só já o destaca, utilizar suas ferramentas em prol de uma história inquietante e aflitiva só mostra como seus filmes são “algo a mais” no atual cenário do cinema mundial.