Após uma jornada frenética pelas ruas de Chicago, um policial em desespero entrega seu parceiro, gravemente ferido, ao hospital. O médico Paul Kersey (Bruce Willis) é retirado de uma cirurgia para atendê-lo em caráter de urgência, mas não há o que fazer. Quase não há tempo para consolar o policial desolado, pois o bandido responsável por essa morte acaba de dar entrada no hospital e o mesmo Kersey é chamado para atendê-lo. Quando o policial, indignado, questiona se o médico irá salvar “o lixo que matou seu parceiro”, este responde, sem nem olhar pra trás, simplesmente: “se eu puder”. Estilisticamente sobre um monitor de batimentos cardíacos, o título “Desejo de Matar” aparece.
Esta cena de abertura, além de mostrar virtudes da direção de Eli Roth (há um belo plano-sequência, com a câmera mudando de perspectiva conforme caminha pelos cômodos do hospital), estabelece de forma clara a ética profissional de Kersey. Este homem, acima de qualquer emoção, trata todas as vidas com a mesma relevância e as suas habilidades profissionais, a despeito do que outros pensem, como ferramentas para cumprir o dever de honrar estas vidas com o mesmo comprometimento. Traços de personalidade fundamentais para contrastar com a iminente queda do protagonista.
Para aqueles que não viram o longa de 1974, estrelado por Charles Bronson, este remake de “Desejo de Matar” também trata de um homem honesto, seguidor das leis, que tem suas bases morais destruídas por um ato arbitrário de barbárie. Algumas diferenças entre os filmes abrem possibilidades para a versão de 2018 trabalhar melhor rimas temáticas (por exemplo, o Paul Kersey de Bronson é um arquiteto, enquanto o de Bruce Willis é médico) e também abrem discussão para um tema maior: o armamento irrestrito da população dos Estados Unidos. Nisso, Roth dá ênfase ao papel da imprensa. Tanto discutindo a violência quanto os atos posteriores do “Anjo da Morte” (Grim Reaper no roteiro original), não existe consenso. Fica a cargo do espectador discutir se as decisões de Kersey estão ou não certas.
O contraste entre a vida de Kersey (seu nome, em inglês, soa muito próximo de curse, “maldição”) antes e depois do atentado sofrido por sua família é intencionalmente gritante: as duas cenas com a família reunida se dão durante o dia, em tomadas abertas e amplamente iluminadas por luz natural. Há frescor na sua rotina. No que tange o roteiro, o casamento com Lucy (Elisabeth Shue) não poderia ser mais reconfortante. A filha Jordan (Camila Morrone), recém-aprovada para a faculdade, representa o fechamento do ciclo de criação de um ser humano, da concepção à vida adulta, de forma correta. Tudo vai bem e, em Cinema, este é o maior indicativo para algo tenebroso acontecer.
Roth escreveu e dirigiu os dois primeiros filmes da franquia “O Albergue”, e boa parte do sucesso deste novo “Desejo de Matar” está na sua competência em construir tensão em cenas graficamente violentas (para quem gosta, não faltam fraturas expostas, tiros na cabeça e afins). Tanto a invasão da casa dos Kersey quanto as posteriores perseguições de Paul aos bandidos, se não entrarão para os anais da cinematografia, ao menos são corretos no que se propõem. Há até espaço para risos, com uma morte ao melhor estilo das armadilhas do clássico “Tom & Jerry”. Outra piada – muito inteligente e oportuna, por sinal – é a menção aos “Ensaios sobre a Economia Positiva”, de Milton Friedman, famoso economista liberal.
Se há muitos acertos, “Desejo de Matar” escorrega na hora de “tirar o 10”. Kersey ser médico em vez de arquiteto cria um contraste evidente: quando ele se torna um justiceiro desenfreado, passa a ser o “senhor da morte” completo, pois tanto tem a capacidade de evitá-la quanto de “concedê-la”. No seu “momento Batman”, quando começa o “treinamento” (todo por vídeos de YouTube, outra crítica à irresponsabilidade de certos produtores de conteúdo da internet), a montagem sobrepõe as habilidades recém-adquiridas de matador às consolidadas de médico. Mas o filme para nisso, não criando um verdadeiro dilema na cabeça de Kersey. Falta também uma cena que “dispare o gatilho” em sua mente, como existe no original.
Algumas soluções de elenco, principalmente a de Dean Norris (o Hank Schrader de “Breaking Bad“) como policial, sem esquecer do próprio Bruce Willis, são burocráticas e óbvias, permitindo que o elenco tenha momentos de “piloto automático”. Isso acaba por diluir a eficiência de decisões corretas, como as sobreposições de debates pró e contra as ações do “Grim Reaper” na mídia, essência que Roth capturou da icônica HQ “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller. Há muita ação noturna neste filme, outra ambientação emprestada da famosa história do Batman, em que os bandidos também não encontram muito “refresco” de seu perseguidor.
Para aqueles que porventura forem aos cinemas imaginando outra ação genérica de matança sem propósito, fica o registro: surpresas chegam por onde menos se espera e “Desejo de Matar” é bem mais do que isso.