Diário de Sintra

Diário de Sintra

Rocha e rio

Wallace Andrioli - 31 de janeiro de 2021

Esse é um filme sobre uma saudade que não passa. Paula Gaitán, viúva de Glauber Rocha, revisita os dias com o marido e os filhos em Sintra, Portugal, onde o cineasta brasileiro viveu alguns dos últimos momentos da sua vida. Gaitán aposta numa relação com os espaços, objetos, pessoas e memórias que tende ao abstrato, transformando em cinema a sensação de um passado que escapa conforme o tempo avança. Diário de Sintra (2008) é nesse sentido uma experiência de fluxo, em que fragmentos de memórias se materializam a partir de imagens fugidias, que não buscam estruturar propriamente uma narrativa com início, meio e fim.

Os lugares de Sintra permanecem sem grandes alterações em relação ao passado, mas os moradores da cidade envelheceram e a maioria deles não reconhece Glauber em fotografias da época em que ele morou por lá. As memórias escapam principalmente para quem não experimentou o convívio íntimo. Como as águas de um rio sempre em movimento, repetidamente mostradas em Diário de Sintra. E mesmo quando rememorado por amigos portugueses dos anos 1970, ele é caracterizado como o “latino forte”, o “revolucionário”. Persona de Glauber que persiste no imaginário e que acaba de alguma forma evocada no filme, apesar da presença (visual e sonora) do cineasta ser também fugidia.

Essa imagem, no entanto, se distancia das cenas privadas registradas e reveladas por Gaitán: o pai carinhoso com os filhos na praia e em casa. Para a diretora, é sobretudo esse Glauber que permanece, como rocha. O homem afetuoso, o companheiro em seus últimos meses de vida. Nesse sentido, Diário de Sintra se afasta bastante de filmes celebratórios sobre o cineasta, como Glauber o filme, Labirinto do Brasil (2003), de Silvio Tendler, e Cordilheiras no Mar: A  Fúria do Fogo Bárbaro (2015), de Geneton Moraes Neto, próximos de sua figura pública incendiária  – além de possuírem narrativas mais convencionais dentro do gênero documentário.

O grande mérito de Diário de Sintra é tornar palpável a lógica da presença-ausência que caracteriza as memórias (e que também rege a representação, princípio básico do cinema). A falta sentida por Gaitán se manifesta no filme a partir da dubiedade entre lembranças que lhes soam muito vivas e um evanescer natural, decorrente do transcorrer do tempo. Rocha e rio. Publicizar essas imagens íntimas, no fim das contas, é também uma forma de ampliar sua capacidade de perdurar. De memórias de quem conheceu Glauber no âmbito privado elas se tornam parte do poderoso imaginário público do cineasta, inclusive contribuindo para torná-lo mais complexo.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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