Plano Aberto

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura

Marvel e DC têm ideias opostas de cinema desde, pelo menos, o fim dos anos 2000. Se a Marvel tem a mão de ferro de Kevin Feige para definir os caminhos e destinos de todas as obras, a DC, pela Warner, tem apostado em diretores com alguma assinatura para seus projetos. Isso, claro, rende alguns altos (o Batman de Matt Reeves, o Aquaman de James Wan) e muitos baixos (os Mulher Maravilha de Patty Jenkins e todos de Zack Snyder com exceção de Batman V Superman). Por mais que o resultado para a Warner tenha sido divisivo principalmente na recepção do público, é de se louvar que o estúdio insista em entregar nas mãos desses diretores projetos cuja liberdade criativa não é absoluta, mas suficiente para que cada obra tenha a sua cara.

Do outro lado temos a Marvel, que, a grosso modo, vem fazendo os mesmos filmes há 14 anos. Vez ou outra, algo escapa do roteiro (não o do filme, o do projeto) e funciona dentro da proposta. O injustiçado Homem-de-Ferro 3, de Shane Black, é um filme que põe no divã todo o simbolismo dos americanos como salvadores do mundo fortalecido após o traumático 11 de setembro. Até mesmo alguns filmes megalomaníacos trazem ideias interessantíssimas, como Vingadores: UItimato e seu estudo do papel dos heróis na fundação da América. Mas, no geral, são filmes genéricos, que existem apenas para manter o processo fordista em andamento e lançar o próximo duelo de bonecos.

Chegamos, então, a Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. O filme calhou de ir parar nas mãos de Sam Raimi, o diretor que fez os melhores filmes de herói até então, a trilogia Homem-Aranha (2002-2007). Apaixonado por terror (sua grande inspiração é Romero), Raimi sempre conseguiu mesclar suas características como artista à mitificação do Homem-Aranha como o mais humano dos personagens. Mas isso aconteceu em tempos distantes, quando nem mesmo a Sony sabia o que fazer com o personagem.

Agora, Raimi está de volta comandando um dos mais audaciosos projetos em termos de filmes de gibi, e a certeza de que não terá a liberdade de fazer o que quer é ponto pacífico por se tratar de um projeto que custou em torno de 200 milhões de dólares. Mas Raimi nunca precisou de muita liberdade para fazer bom cinema, afinal, sua pegada sempre foi comercial e popular. A pergunta, então, é mais complexa: Raimi conseguiria, dentro dos moldes do filme-produto, fazer um filme autoral?

Bem, a resposta também é complexa. Sim e não. É nítido que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é bem diferente do grosso dos filmes da Marvel. Afinal, Raimi é tranquilamente o cineasta mais talentoso a comandar um projeto do estúdio. Mas, por mais que seja o mais talentoso, não parece ter sido o melhor a driblar as limitações. Em vez de construir um grande filme a partir do que é possível, o diretor sequestra a trama uma vez ou outra para mostrar que há, por trás das referências e das explicações, um bom filme de dramas pessoais, traumas e recheado de terror.

Botando de lado o blá blá blá da trama sobre a disputa entre Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) e Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) pela vida de America Chavez (Xochitl Gomez), uma jovem capaz de viajar por dimensões, Raimi entende que há duas coisas mais interessantes no filme: entender o lugar de seu protagonista no mundo e aproveitar a oportunidade de o embate central ser entre dois seres com poderes místicos para criar bastante terror (gênero que mais domina).

O começo até lembra um pouco o que Raimi fez em seu melhor filme, Homem-Aranha 2. Strange dá um pequeno intervalo na vida de bruxo-herói para rever amigos. Vai ao casamento de sua antiga colega de medicina, por quem sempre foi apaixonado, e percebe o quanto suas responsabilidades heróicas prejudicaram sua vida pessoal. Esse questionamento dura pouco, já que o personagem logo se vê obrigado a enfrentar monstros que atacam Nova York e a pancadaria de bonecos começa.

A partir de então, o filme não para. Se em Homem-Aranha 2, Raimi sempre encontrava espaços para respirar e aprofundar seus dramas, tornar seus personagens mais humanos, complexos e então reafirmar o heroísmo de Peter Parker, em Multiverso da Loucura, o filme é simplesmente sequestrado pelo falatório. Da chegada da menina em apuros em diante, são seguidas cenas de personagens explicando e descrevendo conceitos e acontecimentos e o ritmo é completamente destruído. Multiverso da Loucura não é só um filme muito dependente da oratória, é também um filme totalmente construído ao redor dela.

Por mais que a obra se proponha a ser o mais insano do MCU até então, há poucos momentos para isso. Na maior parte do tempo, Raimi está apenas filmando o que tem que ser filmado (personagem A faz participação especial, personagem B faz referência nerd, personagem C comenta sobre personagem D, e por aí vai). Mas, vale o adendo e a reafirmação: Raimi ainda consegue filmar melhor esse blá blá blá do que qualquer outro cineasta que trabalhou com a Marvel até então.

Curiosamente, Raimi encontra os momentos para fazer seu cinema quando os personagens não podem falar. Principalmente nas cenas de fuga, o diretor consegue aproveitar que os diálogos não são necessários (ou impostos) para levar Multiverso da Loucura para um caminho muito mais sombrio, como um verdadeiro filme de terror. Uma pena que até esses bons momentos sejam obliterados quando a obra precisa, claro, fazer o “fan service”.

Então, dizer se Raimi conseguiu fazer um filme autoral dentro dos moldes fordistas da Marvel, é realmente uma questão complicada. Para a maioria, essa pergunta sequer é relevante, mas acho interessante utilizar Multiverso da Loucura como objeto de estudo sobre o autorismo no cinema de heróis. Podemos versar por horas sobre como um filme mecânico e de ritmo lento consegue, vez ou outra, parar de acelerar e ser, curiosamente, mais ritmado, mesmo que reduzindo a marcha.

É como se Multiverso da Loucura fosse uma corrida que parte de uma referência até a próxima, e Raimi tentasse apenas sobreviver a um projeto que voa a 200 km/h e, de vez em quando, buscasse aterrissar para dar alguma atenção à mise-en-scene e construir algo visualmente interessante. Bem, se o diretor ao menos conseguir orçamento para fazer mais um ou dois filmes no futuro, ter entrado nesse trem de loucura terá valido a pena. Ademais, é mais do mesmo, mas melhor filmado.

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