A preocupação com temáticas sociorraciais é algo perene na obra do cineasta Jeferson De, e em seu novo filme, uma figura histórica brasileira de primeira importância torna-se uma janela para que ele exponha e discuta os temas que lhe são caros. O diretor já havia feito isso, de outra maneira, no curta “Carolina” (2003), sobre a escritora Carolina Maria de Jesus. No longa de 2021, que estreou simultaneamente em salas de cinema e na plataforma digital Globoplay – modelo misto de distribuição, sinal dos tempos da ainda vigente pandemia de COVID-19 – o protagonista é o advogado abolicionista Luís Gama.
Conhecido por ter se libertado da escravidão e salvado mais de quinhentas pessoas da mesma condição, Gama tem parte de sua história de vida repassada através de uma minutagem enxuta – não mais que noventa minutos – e que, por natureza estrutural, condensa a trajetória do personagem central a episódios emblemáticos. Em sua função de obra biográfica, “Doutor Gama” é feliz em não tentar compactar a vida inteira do “biografado” de maneira apressada; prefere, mesmo, focar em alguns momentos-chave, que desenvolve com delicadeza e sem pressa, ainda que em algumas instâncias o faça de modo econômico.
Quando é o caso, no entanto, tais sequências não perdem a força – a derradeira interação do pequeno Luís com sua mãe, pouco antes da separação definitiva dos dois, reverbera por todo o restante do filme. Por outras ocasiões, um ou outro episódios são utilizados de maneira simbólica para ilustrar acontecimentos recorrentes não apenas na vida do protagonista, como na de todos os negros à época e que perduram, ainda que sutilmente, nos dias de hoje: Antônio, amigo branco de Luís que o ensina a ler e escrever, leva-o para comungar com dois juristas de seu convívio, mas estes se sentem desconfortáveis na presença de um negro que não se comporta com submissão e logo se levantam para partir; Gama, já advogado, vai ao encontro da viúva do senhor de escravos assassinado pelo cliente que está defendendo e é por ela explicitamente ofendido e tratado como mais indigno que os animais da fazenda.
O diretor situa Luís Gama enquanto um homem negro que, mesmo ainda vivendo modestamente, ascendeu socialmente para um patamar superior ao que era permitido a pessoas de sua cor, portando adentrando meios em que sua presença é vista com desconfiança, desconforto ou mesmo a ojeriza de um racismo pouquíssimo – ou nem um pouco – velado. Sua mera existência enquanto um ser humano autônomo, sólido, inteligente e digno incomoda. Nisso, é possível traçar um paralelo com uma obra indispensável para se pensar a figura do negro na história do cinema brasileiro: “Compasso de Espera” (1973), dirigido por Antunes Filho, centrado em um intelectual negro vivido por Zózimo Bulbul que, no período contemporâneo, enfrenta os problemas que lhe são impostos pelo racismo no trabalho, nas rodas de convívio social e na vida pessoal. Quase cem anos depois, o fictício Jorge, do longa de Antunes Filho, enfrenta alguns dos mesmos problemas que o longa de 2021 encena com a figura real de Gama.
Talvez a escolha narrativa de centrar a carreira de advogado abolicionista o protagonista em um único caso tenha sido uma decisão sábia por parte do cineasta e do roteirista Luiz Antonio. É lógico que um espectador previamente familiarizado com a figura ali retratada possa nutrir uma expectativa de vê-lo libertando quinhentas pessoas, ou um número suficientemente grande para que fique exposta sua atuação incansável em tal função. No entanto, Jeferson De, com o cuidado rítmico que dedica a todo o filme, desenvolve em seu próprio tempo a história de José, escravizado que assassina seu senhor para vingar sua esposa, violentada por este. Com perspicácia, se utiliza desse caso para ilustrar um dos princípios basilares de Gama: o de que o assassínio de um escravagista por parte de um escravizado é um ato de legítima defesa. Ao dedicar parte maciça do terceiro ato ao caso de José e à atuação de Gama em relação a este, o filme chega, mesmo, a tornar-se parcialmente um expoente do subgênero conhecido como “drama jurídico”.
Enquanto “filme de época”, “Doutor Gama” pode por vezes ser enxuto em seus visuais, mas sempre entrega ambientações internas e externas suficientemente bem trabalhadas, o que se reflete nos figurinos e caracterizações. Em seus melhores momentos, De e o fotógrafo Cristiano Conceição orquestram planos que fogem completamente da expectativa de algo mais protocolar, como por vezes é tendência nos filmes biográficos brasileiros desde o período da Retomada pós-Collor, e os casa com a imersiva trilha sonora original de Tiganá Santana, que evoca a ancestralidade africana e os ritmos afro-brasileiros. Jeferson De consegue captar imagens com assinatura visual bem demarcada, mesmo quando retrata cenas desagradáveis como um mercado de escravos à céu aberto. Ainda que trabalhe as cores e o enquadramento de modo a não deixar estes momentos correrem em tela de modo inexpressivo, não tenta descolar tais imagens de seu contexto narrativo e histórico em prol da criação de uma imagem de beleza trágica esvaziada – como fizeram outras produções brasileiras dos últimos anos a retratarem a escravidão, compreensivelmente tornadas objeto de discussão.
Em estrutura, “Doutor Gama” é quase elíptico – parte de uma abertura in media res do julgamento de José, mas logo retorna para a infância de Luís, que é sintetizada em algumas sequências definidoras. O mesmo ocorre com sua juventude, na qual desenvolve a escrita e a leitura, posteriormente conseguindo a libertação de sua condição de escravizado. Mesmo na fase adulta, provavelmente a parte mais substancial e central do longa, com Gama já advogando, de certa forma esse caráter semi-episódico ainda se mantém, ainda que mais sutil, uma vez que o episódio central é, mesmo, o do escravizado que defende-se em legítima defesa e se torna cliente de Luís.
Outros núcleos interagem com esse episódio principal do terceiro ato, e levantam discussões que complementam os questionamentos propostos pelo filme, como o caso de dois escravizados que conseguem se libertar através das armas e as usam para se defender e buscar justiça. Luís se opõe a eles de forma clara e bem demarcada, expondo, ao espectador, que seu instrumento de luta é a lei – lei que favorece os brancos e poderosos, mas que ele utiliza da forma que consegue para defender os negros e oprimidos. Jeferson De não é binário de modo a colocar essas duas formas de luta como antagônicas. Se muito, as torna diferentes, porém complementares – não por acaso, quando em dado momento corre risco de morte, Gama é salvo justamente pelos dois ex-escravizados armados, cujos métodos repreendera anteriormente.
Sabendo explorar questões relativas ao período histórico no qual a narrativa se ambienta – a sequência na qual Luís, recém-liberto, recebe seu primeiro par de sapatos é de uma beleza e uma força admiráveis, apesar de sua aparente simplicidade – construindo uma narrativa efetiva, valorizando um personagem histórico (que até agora não havia sido objeto de produções expressivas no cinema brasileiro) e fugindo da estética padrão das produções biográficas, “Doutor Gama” oxigena esse subgênero que por vezes parece tão exaurido no cinema brasileiro, de forma ocasionalmente didática, mas sempre interessante e digna de nota.