Plano Aberto

Dumbo

O “Dumbo” de 1941 ficou marcado na infância de muitos – inclusive na deste que vos escreve – como uma animação sombria. O fato de a trama alinhar o terror do trabalho escravo com situações nas quais Dumbo e sua mãe, Jumbo, eram expostos a verdadeiras torturas por parte dos humanos fez com que o filme fosse um dos mais soturnos já feitos pela Disney. Porém, ao reassistir à obra recentemente, o que mais me chamou atenção foi outro elemento: a magia. O “Dumbo” de 1941 é, assim como vários clássicos da Disney, um filme que assume seu caráter fabulesco do começo ao fim, desde o trem que “fala” até o nascimento do protagonista, que não se dá pela gravidez de sua mãe, e sim pela chegada de uma cegonha.

O “Dumbo” de 2019 tem um pouco da nuvem negra que pairava sobre a obra de 1941, mas Tim Burton escolhe mesmo é estruturar seu filme a partir da fantasia existente na história do elefante orelhudo voador. A narrativa de “Dumbo” se constrói inteiramente sobre a noção da existência do místico e o choque causado pela tentativa de domesticação dessa magia por parte dos seres humanos. De certa forma, portanto, Burton fala sobre o conflito entre a história clássica de Dumbo e um modelo de cinema mais calcado no realismo, que rejeita e domestica o mágico.

Burton faz escolhas muito bem-vindas para beneficiar seu protagonista, Dumbo (muitos dirão que é Holt ou um de seus filhos, mas o personagem que de fato guia a história é o próprio Dumbo). Pelo fato de o protagonista não falar, adotamos o ponto de vista de de Milly (Nico Parker e Joe (Finley Hobbins), as crianças que trabalham no circo junto a seu pai, o veterano de guerra Holt Farrier (Colin Farrell). A câmera é quase sempre posicionada à altura dos rostos das crianças, o que nos permite muitas vezes ter o ponto de vista delas. Essa escolha funciona justamente pelo fato de os dois personagens serem os únicos, pelo menos inicialmente, que acreditam que Dumbo pode voar. Burton, portanto, aproxima o público não do soldado marcado pela guerra ou do dono do circo itinerante, Max Medici (Danny DeVito), mas das crianças, nos dando um olhar inocente e aberto ao que é místico.

Enriquece “Dumbo” o fato de o roteiro não deixar de lado os personagens humanos. Holt, por exemplo, vê em sua jornada com Dumbo uma oportunidade não só de se reaproximar dos filhos, que não superaram a morte da mãe, mas também de fazer algo que represente sua liberdade. O personagem, após voltar marcado da guerra, se vê preso ao circo itinerante onde trabalha, lugar não muito propício para ele nem para os filhos. Burton e seu diretor de fotografia, Ben Davis, temperam esse desejo por liberdade com belos planos que trazem o personagem vivido por Colin Farrell sentado olhando para o céu, como se voar para longe fosse seu maior desejo.

Voltando a falar sobre a magia que existe no filme – de forma silenciosa e discreta, ela está lá –, a escolha é por fazer com que o próprio Dumbo seja o meio tanto de o espectador vislumbrar o que é místico quanto de os personagens adentrarem nesse mundo mágico. Quando Dumbo bate suas orelhas e voa pela primeira vez, por exemplo, a trilha abandona os metais e madeiras e aposta em um coral que evoca uma aura lúdica e fantástica para o momento, como se o filme entrasse em uma nova seara por haver essa quebra do realismo. É interessante também como elementos do filme de 1941 que eram tratados como mágicos (como a chegada dos bebês trazidos pelas cegonhas) retornam como metáforas: a cegonha, aqui, é uma sinalização do parto de Dumbo, e não um meio para ele chegar nascer. Com essas adaptações, o encantamento trazido pela fantasia permanece, mas de maneira mais sutil, algo necessário para manter o clima sombrio e sério que permeia a obra.

O filme tem uma virada quando o importante empresário Vandevere (Michael Keaton) chega ao circo para levar Dumbo e os demais personagens para um show grandioso. O empresário pontua que Medici possui algo místico em suas mãos, mas não percebe. Apesar de tardar para dar as caras (algo que resulta em um problema na estrutura do filme, já que a obra demora para ter seu conflito apresentado), Vandevere surge como a figura antagonista que quer domar o mágico sob as regras do mundo humano – o plano do personagem de colocar sua musa, Colette (Eva Green) montada em cima do Dumbo é a prova cabal de seu desejo por dominar o místico.

Esse choque entre os personagens e esse mundo dominado pelo Homem (figura que não é personificada só por Vandevere, mas também por alguns de seus parceiros, como o dono de um banco que quer patrocinar Dumbo) é muito bem acompanhado pela fotografia. Se a primeira metade da narrativa é ilustrada com planos abertos e um céu rosado, imprimindo certa doçura e mantendo um quê de místico nas imagens, a metade do filme ambientada no parque de Vandevere substitui o rosa por cores mais escuras e acinzentadas, além de utilizar planos mais fechados e ângulos que colocam o Sol por trás das construções, como se estivesse eclipsado.

“Dumbo” não é um filme livre de defeitos. O subdesenvolvimento de alguns de seus personagens, como as crianças que só servem para verbalizar os sentimentos e feitos de Dumbo, acaba impedindo que haja um arco dramático mais elaborado para os personagens. Outro deslize é o ritmo irregular, que tem seu problema oriundo também da montagem, mas principalmente da estrutura de seu roteiro, já que, como dito, há uma demora para introduzir o conflito principal e o desenvolve rápido demais. Mesmo assim, nada disso é capaz de ofuscar o brilho de um filme que trabalha de forma madura e coerente. Cada vôo de Dumbo é filmado como uma catarse, com planos longos e municiados de uma boa movimentação de câmera. Cada vôo é, portanto, uma emancipação, uma libertação, de um personagem que, por ser o elemento místico raramente visto por aquele mundo, é vitima da constante tentativa de domesticação. Para sua sorte, Dumbo não pode ser domesticado porque o homem é incapaz de controlar aquilo que não se propõe a entender.

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