Plano Aberto

Duna

Escrever sobre um lançamento com um certo distanciamento temporal de sua estreia permite refletir não só sobre o fenômeno fílmico em si, mas também sobre o crítico que gravitou ao seu redor na euforia e nos imperativos do imediatismo. Após ter a oportunidade de ler dezenas de textos detratores de Duna, de Denis Villeneuve, foi muito fascinante notar que a Crítica (generalização necessária) pareceu identificar com muita clareza e precisão os seus temas, sua estética e sua dramaturgia. Contudo, considerando a crítica como atividade bifásica — que envolve primeiro a identificação dos mecanismos fílmicos e depois a valoração sobre eles — a grande maioria decidiu que aquilo que eles foram capazes de enxergar seria algo negativo. Portanto, o objetivo aqui é justamente contrapor essa segunda etapa valorativa da crítica, porque em relação à primeira etapa “objetiva” (talvez não seja um termo preciso) pouco tenho a trazer de inovador ao que já foi apontado. Dizem os críticos: “Duna é oco, vazio, estéril, superficial, hermético, desumano, distanciado etc.”. Ora, até aí, tudo parece preciso, o que se torna um problema é considerar adjetivos dentro de um padrão a priori e não dentro da lógica interna de cada diegese, confundindo o “gostaria que fosse” com “o que de fato é”; “defeitos” com “escolhas”. Sem mais delongas, vamos para Duna e viva os curtos-circuitos paradoxais da Crítica.    

Em sua adaptação da primeira parte de Duna, Villeneuve escolhe como força motriz e olhar de mundo a própria dialética interna existente no protagonista Paul, que é filho de um militar, político e parte da realeza, juntamente com uma mulher envolvida com o misticismo e ligada ao religioso e o profético. Deste modo, o filme vive em um pêndulo que vai coabitando estes dois mundos, pois nada do que acontece na narrativa parece existir fora dessa dualidade. Por isso, as reclamações de falta de humanismo, conexão entre os personagens ou até profundidade não parecem se sustentar. A visão de Villeneuve é precisamente enquadrar tudo como parte deste jogo maior, em que todos os personagens estão cumprindo “papéis”, sejam políticos ou parte de uma “profecia”.  Inclusive, Paul, é justamente o personagem mais perdido e hermético de todos, que vive alheio ao presente e com o pé mais no futuro que foi predestinado a ele, Não há como elel ser um indivíduo autônomo, pois ele não existe fora dessa herança (maldição?) dupla que carrega. Ele é metade herdeiro da casa Atreides e metade Lisan al Gaib (Messias). De mesmo modo, todos os outros personagens são arquétipos de suas funções dentro de um contexto macropolítico ou religioso, talvez com exceção do personagem do Jason Momoa, o único que de fato parece externo a isso, um lone wolf que é motivado pela relação de amizade com Paul — e é importante que exista essa anomalia no sistema, justamente para mostrar que ele não é fechado em si mesmo e há como escapar dele. 

Assim, partindo desta dialética, Villeneuve parece ter um fetiche muito claro em tratar este universo não de maneira intimista, mas como parte de algo maior (Duna é de fato grandioso em escala), a partir da observação de tradições, rituais, formalidades, profecias e religiosidade. Neste sentido, tudo se encaixa dentro de um ciclo vicioso estrutural que existe há séculos, muito mesmo antes daqueles personagens. Dentro do aspecto político, existe um claro fascínio no olhar de Denis pelo militarismo imperialista e pelos gestos de realeza que fazem parte das famílias Atreides e Harkonnen (não restam dúvidas de que o embate deste primeiro filme é de Mal vs. Mal). Logo, existem muitos planos gerais que exploram com essa visão dos exércitos enfileirados em grande escala, rigorosamente dispostos e sincronizados. Igualmente, os ritos formais que envolvem os encontros políticos também ganham uma atenção especial, como uma grande farsa teatral de demonstração de grandeza (a arquitetura e as naves são gigantes), como na chegada dos Atreides em Arrakis. 

Do outro lado da dialética, Duna também possui todo o seu aspecto messiânico e talvez seja nele que Villeneuve tenha um pouco mais de dificuldade em resolvê-lo imageticamente, no sentido de que falta em sua mise-en-scène um certa atmosfera mais espiritual, de modo que o sonoro precisa fazer uma certa compensação diante desta falta. Por exemplo, toda aquela cena em que Paul precisa usar a voz com a sua mãe para pegar o copo muito mal resolvida criativamente. Entretanto, não sei se concordo com outra reclamação comum de que falta uma “psicodelia” nas imagens das visões como muitos reclamaram, principalmente porque a ideia do Villeneuve não é relacionada ao transcendental e a uma lisergia, como a da adaptação de David Lynch, mas muito mais ligada ao religioso. 

Neste sentido, parece interessante como existe um certo fetiche do filme com as constantes interrupções na progressão narrativa para se demorar dentro das visões de Paul, como se estivesse mais interessado num possível futuro do que no próprio presente. O que importa aqui é menos pensar nas “consequências” e mais nas “causas”, em mostrar imagens fora de contexto para que depois o espectador tenha uma recompensa, em futuros filmes, de identificar se elas se cumprirão ou se frustrarão, além do “como”. Se por um lado isso parece uma muleta narrativa que prende a obra individual a uma dependência de funcionamento como parte de uma franquia, é como se existisse uma força autônoma que sente uma necessidade de estar sempre a frente de si mesmo, de que o que importa mesmo é o fatalismo, tirando o peso dos acontecimentos do presente (o que justifica a opção narrativa da invasão Harkonnen não ser o grande clímax da primeira parte). 

De um ponto de vista estético, também muito se criticou a arquitetura e ambientação do filme. Normalmente, sou bastante crítico da estética hollywoodiana atual, que de fato é monocromática, sem vida, escura para esconder CGI e filtrada por um tom predominantemente marrom. Apesar deste cenário geral, dentro da lógica interna da visão de Villeneuve sobre o universo de Frank Herbert, essas escolhas parecem fazer bastante sentido. Afinal, Arrakis é realmente explorada como um grande inferno vazio, um cemitério no qual os personagens são enviados para morrer, em que não há beleza, só função econômica, sendo tudo um grande amontoado de areia que parece igual e em looping — talvez algo como a versão milionária de O Tiro Certo, do Monte Hellman, nesse sentido. Similarmente, a arquitetura também é desconvidativa, bruta e opressora, uma vez que ela não está ali para agradar “esteticamente” ou gerar um plano “pictórico”, mas causar desconforto e evidenciar esta falta de vida que permeia o filme, parte deste jogo de forças militares.  

Por fim, que o roteiro decida rejeitar a ideia de grande clímax em seu final, localizando a grande invasão dos Harkonnen um pouco depois da metade da narrativa (o que inicialmente vi com estranheza), diz muito sobre a autoconsciência de Duna com seus objetivos. Se a ideia principal desta primeira parte era tratar a dialética entre a farsa política e o messianismo, era preciso haver um clímax para cada um dos polos. O momento da invasão é a inevitável autofagia do primeiro, no ambiente macro, enquanto a vitória de Paul, no confronto individual é a sua afirmação como Messias. 

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