É Rocha e Rio, Negro Léo

É Rocha e Rio, Negro Léo

Reflexões em clima intimista tornam envolvente novo documentário de Paula Gaitán

Igor Nolasco - 28 de agosto de 2020

“É Rocha e Rio, Negro Léo” começa com um plano que captura a varanda de um apartamento. Dentre as vozes entreouvidas, uma diz que “a vovó vai vir aqui filmar hoje”.  Um espectador previamente familiarizado com o contexto que envolve a produção já consegue entender o que está acontecendo: Paula Gaitán está chegando para visitar seu genro, o músico e sociólogo Leonardo Campelo Gonçalves, que em dado momento das duas horas e meia de projeção seguintes comenta sobre a origem de seu nome artístico: Negro Léo.

Se essa abertura estabelece o tom para uma atmosfera intimista de um filme gravado em família, o longa consegue alcançar tal intimidade sem seguir uma linha excessivamente sentimental. A presença de Paula Gaitán, na verdade, é quase invisível. Em tempos de documentaristas que priorizam construções narrativas ao redor de suas próprias figuras, tal abordagem está se tornando praticamente uma raridade.

Enquanto a câmera sobe as escadas ao som de uma canção de Tim Maia, o filme adentra o universo de Negro Léo. Podendo parecer inicialmente contido no microcosmo do apartamento, tal universo não tarda a revelar onde está contida a sua imensidão: na mente do homem que está sentado ao sofá, despojado, enquanto conversa com sua esposa Ava, ao computador, sobre músicas da plataforma Bandcamp.

Não é necessário ser anteriormente familiarizado com a figura de Negro Léo para tornar-se fascinado por ela após alguns minutos. Entrando no campo de visão da câmera sem apresentação formal, o primeiro contato dele com o espectador é o de escutar música atentamente enquanto troca comentários enxutos com Ava sobre o que está sendo ouvido. Após esses momentos iniciais de poucas palavras, o homem que é objeto do filme começa verdadeiramente a falar, e está longe de se restringir a discursar sobre música – mesmo esta sendo um dos tópicos abordados, e com muita propriedade. História do Brasil, raça, classe, religião, redes sociais e tantos outros assuntos são elaborados por Negro Léo, que é o centro do filme de maneira absoluta: a câmera raramente deixa sua presença.

Todos os tópicos discutidos no miolo do longa se relacionam direta ou indiretamente ao Brasil. “É Rocha e Rio, Negro Léo” também pode ser visto dessa maneira; um filme sobre o Brasil, sobre a discussão de ideias acerca do Brasil a partir da perspectiva de um intelectual orgânico. Impossível discorrer sobre esse aspecto em específico sem situar o que está em tela com seu ano de produção; o longa de Gaitán não deixa de capturar o zeitgeist do Brasil de 2019. Da situação social do país durante o governo Lula à eleição de Bolsonaro, da formação racial do Brasil aos reflexos de uma desigualdade ainda imperante, o músico e sociólogo esquadrinha uma série de pensamentos sobre o nascimento, a morte e o além-vida das utopias.

Sustentar a esperança em utopias no Brasil sempre foi uma tarefa difícil; no Brasil de 2019, particularmente hercúlea; talvez ainda mais no de 2020. Campelo acaba sendo um avatar de tudo o que parece estar em baixa no discurso oficial do país: lucidez, compreensão e estudo acerca da contemporaneidade e da história brasileira e mundial, ponderação e sobretudo dúvida. Apesar de muitas vezes falar em tom assertivo, Negro Léo sempre deixa aberto o espaço da dúvida. Um homem que se apresenta como uma fonte inestancável de certezas nada mais é do que um sofista, e o documentado de Gaitán em hora alguma assume esse papel. “É Rocha e Rio, Negro Léo” acaba contendo, em seu bojo, uma coletânea verbal e imagética de ensaios sobre o estado das coisas no Brasil, uma tentativa de tecer considerações sobre o passado e iluminar as ainda nebulosas incertezas do futuro.

Se o domínio da imagem por meio de uma só figura pode soar como potencialmente desgastante, ele não o é; sustenta-se principalmente pelo carisma genuíno, conhecimento e eloquência do documentado e pela abordagem perspicaz de Paula Gaitán, que consegue manter um distanciamento louvável (considerando-se o contexto íntimo dos elementos filmados) e tornar de seu documentário um espaço para que o homem que titula o longa discorra livremente sobre suas ideias.

No que se refere a linguagem, boa parte do filme aposta em câmeras fixas que capturam Negro Léo em diversos pontos de seu apartamento; seja sentado, seja em pé, sempre pensando e falando, com ocasionais pausas para escutar música ou procurar discos em suas estantes. É digno de nota que, apesar de boa parte da estética do longa ser calcada em uma aparente simplicidade, tal  abordagem sequer chega remotamente perto de tornar-se protocolar. Parecem simplesmente escolhas naturais, e funcionam justamente pelo minimalismo que não obstante jamais deixa o filme seguir sem que cada sequência capturada possua algo interessante nas falas, um momento inusitado, uma surpresa. “É Rocha e Rio, Negro Léo” não é apenas um mostruário para as virtudes intelectuais e musicais de seu documentado, mas também uma produção sobre a beleza e a profundidade do cotidiano.

A duração de aproximadamente 160 minutos, por mais que relativamente robusta, em momento algum pesa durante a projeção; o clima criado por Gaitán, em sua opção de filmagem direta, frontal, focada em uma só figura, gravada quase inteiramente dentro de um apartamento, faz com que o longa torne-se imersivo ao deixar o espectador no fora de tela tão confortável quanto quem está dentro dela. À exceção da sequência final, que retrata Leonardo Campelo em um outro ambiente, em uma de suas performances, o filme poderia muito bem ser intitulado “Uma Tarde com Negro Léo”, uma vez que a sensação de assisti-lo é justamente a de ser uma visita naquele espaço, de estar ali informalmente, para testemunhar conversas que, apesar da displicência, jamais são desprovidas de substância.

Assim como não é preciso conhecer Campelo previamente para conseguir embarcar na proposta de Gaitán, também não se faz necessário saber de tudo o que se passa dentro da mente do documentado para ouvir e sentir sua música. No entanto, assistir à performance que faz as vias de finalização após passar mais de duas horas absorvendo as ideias do homem faz com que ela se torne filmicamente uma espécie de explosão de tudo o que foi previamente discutido. A transformação de toda a carga intelectual em energia, em força, em arte.

Da mesma forma que Negro Léo canaliza tudo isso em sua música, Gaitán o faz em seu filme. “É Rocha e Rio, Negro Léo” torna-se um filme rico em conteúdo que o expurga em sua potência imagética enquanto arte. Vai muito além das aparências iniciais, não se restringe a ser apenas um documentários-retrato acerca de um indivíduo. Mesmo se o fosse, já seria uma produção suficientemente interessante. 160 minutos é pouco para conhecer Campelo. Os créditos finais surgem em tela deixando o espectador na vontade de continuar a conviver com o documentado.


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