Construído a partir da simulação de telas de câmeras e aplicativos de celulares, “Lembra” acompanha momentos distintos da rotina de duas jovens da classe média carioca. Martinelli parece ter como um dos princípios de seu curta estudar a ressignificação das imagens que ocorre a cada momento na tela. Desde os filtros de Instagram utilizados para caçoar de Michel Temer – que, convenhamos, é um dos grandes vilões da política brasileira nesse século e que, aqui, se torna um dispositivo humorístico – até a forma como as jovens se relacionam com as obras que encontram pelo Museu de Belas Artes – que também acabam sendo tratadas com desdém pelas jovens.
É interessante como o diretor aproveita as três telas para expor os contrastes do Rio de Janeiro. Se no Museu de Belas Artes, duas adolescentes brancas de classe média se divertem tirando fotos, nas ruas, há imagens da tropa de choque se movimentando, escancarando o abismo que há entre as classes da “cidade maravilhosa”. Se para alguns, o filme pode ser criticado por manter um olhar muito preso à classe média, é interessante pensar que, da metade para o final, a narrativa se volta justamente para criticar esse recorte elitizado das personagens.
Martinelli acaba por conseguir expor as bolhas nas quais as protagonistas vivem. As amigas da dupla principal, por exemplo, se preocupam com o fato de elas apenas presenciarem atos de violência enquanto a população pobre está de fato sendo violentada, algo que não vemos, mas que Martinelli consegue deixar a existência clara, tanto por saber quando encaixar as imagens da intervenção militar, quanto por ressaltar como, para aquelas meninas, a solução é simplesmente se afastar do centro da cidade e curtir uma praia, justamente a região mais elitizada do município.
O desfecho, que monta de forma ágil trechos anteriores do curta, funciona por sugerir uma pane no aparelho celular, como se a vida do curta-metragem dependesse dele para existir. É a conclusão da ideia da efemeridade não só dos registros feitos, mas dos momentos vividos, das “críticas sociais fodas” proferidas e até mesmo de uma vida baseada em redes sociais e busca por likes.
Com uma estética essencialmente teatral, que se baseia na troca de estímulos entre personagens em uma plateia e uma presença quase mística (a própria Grace Passô) que dá voz a essa plateia no palco, “Vaga Carne” é um interessante veículo não só de conquista de voz, como também um interessante estudo sobre a força da própria arte.
Os personagens silenciosos observam a figura de Grace enquanto ela expressa sentimentos e devaneios desse público sentado quieto. O fato de essa figura ser uma mulher negra é, por si só, importante, já que engloba duas minorias que costumam ser as mais silenciadas em uma sociedade construída ao redor do homem branco como é a nossa.
O curioso é que, como dito, o filme acaba sendo também um ode ao poder da arte de dar voz a essas pessoas. A personagem de Grace representa lindamente uma tela de cinema, uma peça de teatro, uma música ou até mesmo um quadro. Na visão de Grace e de Ricardo, cabe também a arte o papel de dar voz às pessoas que costumam não ter espaço de fala. A protagonista é a personificação da força da arte como documento de seu tempo.
“Filme Catástrofe” reitera ideias (tanto intelectuais quanto estéticas) que Jean-Luc Godard já havia apresentado em “Filme Socialismo”, “Adeus à Linguagem” e “Imagem e Palavra“. Desde a saturação extrema das cores até o uso de imagens que parecem estar desgastadas ou estragadas, a ideia é apresentar um mundo não à beira de um colapso, mas já em processo de putrefação.
O diferencial é que, aqui, Grivas, sobrinho do próprio Godard, traz imagens do tio durante as filmagens de “Filme Socialismo”. Não surpreende ninguém que conheça um pouco da personalidade do que talvez seja o mais importante cineasta vivo o fato de o francês estar sempre emburrado e mal humorado. Grivas, porém, não utiliza a imagem de seu tio meramente como um dispositivo de humor. A ideia, na verdade, é ressaltar como as obras recentes de Godard de fato representam suas ideias e posturas no dia-a-dia.
Há, por exemplo, um momento divertido no qual o rosto enfurecido de Godard é filmado e cortado bruscamente. O plano seguinte? Uma festa com música em volumes ensurdecedores. À primeira vista, pode-se compreender simplesmente como o incômodo que Godard sente pela modernidade, mas analisando as obras do próprio Godard e a forma como “Filme Catástrofe” é filmado, fica evidente que a ideia é mais específica. Talvez mostrar o incômodo do lendário diretor com a apatia da humanidade enquanto o mundo está se esfacelando.
O longa consegue, graças à ágil montagem, construir essa significação ao unir em planos subsequentes as causas e os efeitos, mas acaba se ancorando demais na obra do próprio Godard, que fez um trabalho mais preciso quando abordou tais temas em sua filmografia. É de se elogiar, porém, o fato de Grivas conseguir balancear seu próprio humor com o olhar ranzinza de seu tio. Grivas parece encarar a tragédia da situação da Europa atual não com pessimismo ou revolta, mas com algum desapego, como se o que restasse fosse apenas registrar a catástrofe e, enquanto for possível, fazer filmes. É, de certa forma, a documentação do fim e da ira de Godard diante desse cenário.