Embriagado de Amor (2002)

Embriagado de Amor (2002)

Controlando o caos do mundo

Wallace Andrioli - 27 de julho de 2020

Há em Boogie Nights – Prazer Sem Limites (1997) e Magnólia (1999) uma polifonia decorrente do grande número de personagens das respectivas histórias, que disputam a atenção da câmera de Paul Thomas Anderson. A sensação de vertigem que por vezes emerge nesses filmes, especialmente no segundo, tem a ver com o esforço do diretor por construir um olhar multifocal, que dê conta de muitos dramas com relativo equilíbrio. Embriagado de Amor (2002) é uma espécie de exercício de controle, por parte de Anderson, desses elementos característicos de seu cinema anterior. A polifonia e o histrionismo seguem presentes, mas articulados de outra forma.

O filme tem apenas um protagonista: o solitário e meio perturbado Barry Egan (Adam Sandler), pequeno empresário californiano. É um personagem que, por suas características emocionais, até caberia nos mosaicos de Boogie Nights e Magnólia, mas Anderson opta pela concentração do foco. Todo o ruído do mundo, no entanto, permanece, ainda que em segundo plano.

Duas sequências de Embriagado de Amor exemplificam bem isso. Na primeira, Barry vai ao aniversário de uma de suas sete irmãs. Elas representam uma força opressora na vida desse homem e, antes dele surgir na cena, já são ouvidas suas vozes. O protagonista abre a porta e hesita duas vezes antes de entrar. Ao fazê-lo, é logo encurralado por quatro das mulheres contra uma parede. Dominantes no quadro, elas fazem perguntas constrangedoras sobre o passado. Quando finalmente escapa desse jugo, ocupando sozinho o espaço enquadrado, ele é surpreendido por uma quinta irmã, que chega por trás e lhe dá um susto. Barry está cercado.

Pouco depois, ainda nessa sequência, o protagonista é novamente filmado sozinho, mas não chega a ser de fato dono da cena, já que as vozes sobrepostas das mulheres permanecem, torturando-o com comentários desagradáveis. É então que Anderson abandona Barry e passa a filmar seus familiares se posicionando na mesa de jantar. Mas esse abandono dura muito pouco, pois o sujeito irrompe na cena quebrando três portas de vidro. No quadro que se forma, ele aparece duplamente: de costas para a câmera, confrontando as irmãs, e numa fotografia pendurada na parede, que só passa a ser vista após a quebra dos vidros. Embriagado de Amor é sobre um homem solitário e amargurado lutando por protagonismo em sua própria história. É como se um dos personagens de Magnólia tomasse à força o controle daquela narrativa fragmentada.

A segunda sequência traz Barry numa manhã agitada no trabalho. Ele recebe uma de suas irmãs e Lena (Emily Watson), por quem está apaixonado; atende a telefonemas ameaçadores de uma call girl; dá ordens desconexas ao sócio Lance (Luis Guzmán); e, no seu entorno, outras pessoas exercem seus ofícios, às vezes de forma atabalhoada (como o motorista de uma empilhadeira que causa um acidente no local). Anderson registra tudo isso acontecendo ao mesmo tempo, com movimentos de câmera vertiginosos e sobreposição de sons diegéticos, vozes e trilha musical. Cria assim a sensação de um mundo exterior que acontece à revelia de Barry, mas que parece sempre pronto a tragá-lo e destruí-lo. O diretor, nesse sentido, é quase expressionista, pela forma como faz a perturbação emocional do protagonista se concretizar numa confusão factual ao seu redor.

Barry luta para apascentar essa confusão, mas Embriagado de Amor não fala exatamente de um sujeito querendo apenas se livrar de quem o cerca e ficar sozinho. O protagonista já é profundamente solitário. E essa é, na verdade, uma história de amor. Então Anderson se dedica a filmar a transformação desse homem que, a princípio, ou está só ou cercado de figuras que o ameaçam, na metade de um par.

O diretor é muito eficaz na construção, pela mise-en-scène, da solidão de Barry. O plano que abre Embriagado de Amor já traz o personagem no canto do quadro, com um amplo espaço vazio ao seu lado. Variações dessa composição surgem em outros momentos do filme: Barry encostado em alguma parede ao se sentir embaraçado ou, na sequência da ligação para a call girl, sendo repetidamente posicionado nas bordas da imagem, enquanto a câmera se movimenta por seu apartamento como que buscando uma forma de registrar o acontecimento preservando a dignidade do sujeito – a solução é semelhante àquela encontrada por Martin Scorsese em Taxi Driver (1976), quando Travis Bickle (Robert De Niro) se humilha num telefonema: desviar o olhar no ápice do constrangimento.

Anderson também explicita visualmente a gradual harmonia alcançada por Barry conforme aprofunda sua relação com Lena. A primeira aparição da moça gera desconcerto, efeito esperado de uma paixão arrebatadora, mas já nessa primeira cena ela se posiciona no quadro de forma a produzir equilíbrio ao lado do protagonista. Esse tipo de composição se repete em outros momentos do filme e o diretor ainda insere pequenos maneirismos para ressaltar a paixão dos personagens, como a cabine telefônica que acende no exato momento em que Lena atende à chamada de Barry e a íris que delimita suas mãos dadas.

Mas são duas cenas específicas que marcam a ascensão do casal ao protagonismo, em detrimento do indivíduo solitário e do coletivo ruidoso. Na primeira, Barry e Lena se reencontram no Havaí. O diretor opta por um plano geral que destaca as silhuetas dos personagens se abraçando e beijando. Durante alguns segundos, inúmeras pessoas atravessam o quadro, caminhando em sentidos diversos, mas o plano só termina quando o casal enfim resta sozinho. Já na segunda, que encerra o filme, Lena abraça Barry por trás enquanto ele, sentado, toca piano. Ela diz: “Então aqui vamos nós”. Essa última cena, especialmente essa fala, reaproxima Embriagado de Amor de Magnólia, cujo final também tem um casal dando início a um relacionamento. Ambos são filmes de (re)começo.

Mas, na obra de Paul Thomas Anderson, Embriagado de Amor se define melhor como um filme de transição, um ponto de passagem entre o histrionismo dos anos 1990 e a austeridade vista a partir de Sangue Negro (2007). Ao fazer com que Barry e Lena se sobreponham ao mundo de movimento e barulho que os cerca, Anderson parece anunciar seu cinema vindouro. Por estar nessa encruzilhada, Embriagado de Amor consegue reunir o melhor das fases distintas da filmografia de seu diretor.

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