Encontrado em iPhone

Encontrado em iPhone

Brincadeira corriqueira de Josh Lee se transforma em um retrato de uma sociedade consumista e alienada de dentro da Apple.

João Oliveira - 23 de agosto de 2020

“Um obrigado especial para a pessoa da Apple que inventou o Airdrop.”

Encontrado em iPhone termina com esta frase emblemática. O experimento de Josh Lee é extremamente intrigante, afinal, o que uma compilação de filmagens feitas por iPhones a venda em lojas da Apple pode nos contar? A frase sarcástica que encerra este curta documental dá a entender que ele é uma grande brincadeira (não deixa de ser), mas há muito para se extrair deste filme. Lee termina seu curta debochando do quão fácil foi a obtenção destas imagens e agradece a criadora do iPhone por ser uma auxiliadora do processo. Isso por si só já diz muito sobre o curta-metragem de apenas dez minutos: a Apple é mais parte do problema do que solução dele.

No mundo do capitalismo tardio, o consumismo é modo de vida. Pautado pela globalização e pela superexposição, este mundo se alimenta da perpetuação de um status quo que se nutre da obsolescência programada. A Apple, uma das principais empresas contemporâneas da indústria de tecnologia, colabora para a manutenção deste status, vendendo um estilo de vida moderno e amigável: a empresa apresenta praticamente um iPhone novo por ano usando atualizações ou trocas pontuais no design como pretexto para estes lançamentos. A companhia seduz o consumidor a querer estar sempre com o mais novo modelo de seu telefone, ter um iPhone passou a significar muito mais do que possuir somente um bom celular, virou sinônimo de pertencimento. Além disso, devido ao aspecto globalizado da tecnologia e o uso desenfreado das redes sociais, é corriqueiro vermos pessoas influentes usufruindo do aparelho, um novo símbolo do capital. Outro ponto importante de ser ressaltado é que, atualmente, o dispositivo deixou de ser lazer e passou a ser ferramenta vital para o homem, facilitando a capitalização fácil deste produto. Portanto, há poder nas imagens roubadas de Josh Lee.

Ambientadas em diferentes lojas da Apple, as breves cenas retratam uma sociedade cooptada por este capitalismo. Por mais que as lojas possuam diferentes endereços, seus ambientes são muito similares, deixando a sensação de padronização dos gostos. Se os ambientes são similares, há a pluralidade de pessoas. Gente de todos os tipos de raças, gêneros, idades e classes sociais aparecem nos vídeos selecionados. A diversidade de pessoas só denota que todos estão sujeitos ao fetichismo da mercadoria.

É interessante perceber que somente uma cena mostra alguém adquirindo o produto — filmada a distância por um anônimo testa o celular — enquanto tira uma selfie com a caixa dele. O desejo pelo dispositivo nem sempre resulta na sua obtenção, então muitas destas pessoas ocupam aquele espaço transitoriamente apenas para sentir brevemente o gosto de fazer parte do hype. Essa necessidade pura e simples de estar junto é evidenciada em algumas filmagens: grupos de amigos emulando influenciadores digitais, outros cantando diante das câmeras e alguns conversando com a câmera, tratando-a como uma confidente. Estes três exemplos, por mais simples que soem, carregam todo o significado desse smartphone para a sociedade contemporânea: um símbolo ligado ao sucesso e extremamente relacionável.

Há uma cena do documentário que sintetiza bem a alienação coletiva promovida pela Apple: o momento do incêndio. De dentro da loja, uma pessoa filma uma banca de jornal e uma árvore pegarem fogo enquanto várias pessoas observam o evento inertes de dentro do local. Todos em cena se localizam dentro da Apple ­­—­ que os conforta — e filmam o fogo via iPhone, o único modelo de comunicação. Não há falas claras, apenas um burburinho e o fogo queimando. O ímpeto em reportar o ocorrido é maior que a vontade de acabar com o problema e a proteção que a loja proporciona é suficiente para que nada seja feito, restando esperar que alguém de fora o faça.

O olhar do mundo através dos iPhones evidencia outra questão constante em nossa sociedade: o estado de vigilância constante. Nossa vida é vista e mostrada através de lentes e, por mais que achemos que há conforto e privacidade em nossos celulares, nem sempre isso é verdade. É por isso, então, que a frase final que o diretor insere no filme é tão importante, pois sua provocação coloca em xeque esta segurança e conforto que sentimos. Ao utilizar de uma ferramenta criada pela própria Apple para roubar imagens supostamente privadas dos dispositivos em exposição, Justin Lee consegue evidenciar alguns dos problemas que a Apple se interessa em perpetuar. Com isso, a brincadeira banal se transforma em um retrato cru da sociedade capitalista e extrai-se dela a seriedade.


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