J.D Vance retorna à cidade natal após sua mãe ter uma overdose de heroína. Quando ele chega ao hospital ele tenta, sem sucesso, evitar que ela receba alta no mesmo dia, tendo apenas ganhado algumas horas de vantagem. Sua mãe, ao perceber que o filho não conseguiu convencer os médicos a deixarem ela permanecer no leito, reclama: “Até às 15 horas? Foi só isso que sua retórica de advogado conseguiu?” Um pouco mais tarde, J.D consegue, com muito esforço, convencer a coordenação de um centro de reabilitação a internar sua mãe. Há uma questão central à Era uma vez um sonho, que acaba sendo evidenciada com essas cenas ainda que involuntariamente, ele é um filme de apelação. Os problemas conceituais do filme parecem ter como origem justamente este ponto.
Esse é um dado que qualquer outra cena pode deixar transparecer, é até mesmo difícil tentar apontar cenas chave em um filme que mal parece ter noção de como uma se comporta em relação às outras, cada uma tenta levar os seus personagens das situações mais banais às mais extremas. Cada instante parece levar o drama de seus personagens a um ponto insustentável, tudo pensado em uma resposta emocional, mas com um exagero quase cômico. Com vinte minutos de projeção, a personagem de Amy Adams se descontrola, persegue o J.D adolescente à tapas após quase matar os dois em um acidente de trânsito. Ron Howard explode o drama junto de sua dramaturgia e os joga para todos os cantos. Para fazer um julgamento honesto, a pretensão de Howard é fundamentalmente técnica, é sobre ser eficiente. Porém, mesmo com um anseio tamanho por incitar uma catarse, o filme não parece medir intensidade, não deixa acumular emoção e tampouco sabe como dispersá-la.
Novamente, a origem de uma descalibragem como essa é o caráter apelativo do projeto como um todo. Contudo, o que se demonstra superficialmente como uma apelação termina por jogar luz sobre uma condescendência da obra com seus personagens e com seu público. Era uma vez um sonho soa apelativo porque busca agradar. Há ironias na forma como as coisas se desenrolam: o filme muitas vezes recorre a uma câmera na mão, mas não para explorar possibilidades realistas, ou um corpo a corpo com a cena, mas apenas para efeitos de realismo; as performances de Amy Adams e Glenn Close, de tanto se esforçarem para mostrar o que suas personagens têm de mais prosaico ou frugal, tornam as duas personagens em pessoas irreais, versões grotescas delas mesmas. Porém, também é difícil afirmar o quando que Adams e Close poderiam acrescentar de nuance emocional a duas personagens projetadas para chamar atenção a todo instante. A personagem de Adams principalmente é a todo instante desumanizada, vista como um sujeito de repulsa, de desvirtuamento moral, de abjeção.
Ainda sobre condescendência, é importante dizer que o apelo do filme faz com que o tempo todo ele tente demonstrar sua própria boa fé. O personagem de J.D, que é o autor das memórias que deram origem ao filme, aparece no filme como um exemplo de retidão moral, mas em contraste à sua família interiorana que não consegue ser bem sucedida. J.D é um personagem que começa em contradição com ele mesmo: quando adolescente ele comete pequenos delitos, é imaturo e desleixado ao mesmo tempo que não suporta a auto indulgência da mãe. Porém, após ele se disciplinar, com pequenos empregos no pequeno comércio da cidade e com uma temporada servindo às forças armadas americanas, ele tenta uma vaga de estágio em Yale. O detalhe crucial nesta história é que em nenhum momento questiona-se a integridade do J.D adulto ou a conjuntura em que ele se insere, J.D é a personificação do ideal americano do esforço individual e da virtude. O ponto de vista é personalíssimo, alcançar o sucesso ou não parece depender fundamentalmente de ser íntegro ou auto derrotista.
Um dos poucos momentos em que o debate moral vai para o meio comum dos personagens é o momento em que Vance senta-se em um jantar com os acadêmicos de Yale. Ao saberem da origem humilde de Vance, os membros elitizados da faculdade não perdem a chance de tirar um deboche ao qual J.D irá reagir indignado. Porém, mais tarde ele se submete ao processo de seleção da vaga de estágio, coordenado pelas mesmas pessoas que tinham debochado de sua origem, quase como em resignação. É sabido que o J.D adulto comete “atos falhos” dentro de sua pessoa retida que o lembram de seu passado desvirtuado, como o rompante de fúria que o coloca contra um dos namorados de sua mãe. Quando ele se questiona se sua revolta na mesa do jantar em Yale poderia afetar suas chances no estágio, esse torna-se mais um momento visto como uma quebra do ideal que seu personagem passou a representar.
Muito se fala no filme de uma herança familiar, da ancestralidade dos caipiras das montanhas (vale ressaltar, a respeito do título original Hillbilly Elegy, que hillbilly é frequentemente visto como um termo pejorativo), ao ponto do projeto se colocar como elegíaco. Talvez a maior ironia, maior do que a ironia formal de que o encenador e os atores se esforçam tanto para fingir uma autenticidade, seja colocar o sujeito da elegia como desumanizado em função de um ideal obediente. Ainda que fale da construção de uma ética pessoal, a tendência que impera em Era uma vez um sonho é a conformidade. A razão pela qual este é um filme sintoma antes de mais nada, mais do que o apelo pueril às instituições canônicas do cinema, é que a contradição do projeto de Howard e Vance está no seio da cultura americana.