O último longa dirigido por Charlie Kaufman era, antes do novo lançamento da Netflix, Anomalisa, de 2015. O filme tem como grande mérito, ao meu ver, a forma como aprofunda seu drama a partir do naturalismo da jornada de seu protagonista. Mas em certo momento, Anomalisa parece não saber mais para onde ir, e aos poucos esse naturalismo sai de cena para dar lugar a uma narrativa mais caricata, dependente de obviedades e dramatizações exageradas que rompem com esse fluxo naturalista. Esse problema, curiosamente, não se vê nos filmes em que Kaufman não dirigiu, apenas roteirizou. Quero Ser John Malkovich (de Spike Jonze) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (de Michael Gondry) acertam justamente por, entre outras coisas, saberem dosar o naturalismo e a caricatura, de forma que cada um dos traços narrativos contribui sem trazer um estranhamento. Há, portanto, uma unidade, que é temática e, principalmente, estética.
No novo filme, Estou Pensando em Acabar Com Tudo, fico com a impressão de que, novamente, Kaufman teve uma excelente ideia – adaptando o livro homônimo –, mas talvez por não ser tão bom como diretor como é como roteirista, não foi capaz de transpor estas ideias para construir um filme conciso. Estou Pensando é um filme que propõe um estudo de relacionamentos e fases da vida que se desenvolve a partir da mente da própria protagonista. O que temos, portanto, é um mundo fílmico que sempre reage à sua protagonista. Como um aparente simples zelador de colégio que parece dizer e responder exatamente da forma como a personagem precisa – não em um sentido de que o roteiro seja expositivo, mas sim com uma narrativa que transforma todo o mundo que cerca a personagem em algo que reage a ela.
Essa narrativa pouco realista, claro, é muito propícia para a construção de um universo caricato, que é o que Kaufman faz sem o menor pudor em alguns momentos. O que falta, porém, é aquilo que também não encontro em Anomalisa, que é uma argamassa capaz de servir de base para esse mundo que alterna entre o ordinário e o absurdo de forma que mantenha alguma linha. Estou Pensando em Acabar com Tudo varia tanto em suas reflexões e proposições intelectuais que, no meio de tantos diálogos, abafa as próprias ideias e acaba deixando para o espectador apenas um quebra-cabeças a ser montado. O impacto é muito mais para fins paratextuais do que para a experiência contida dentro dos 135 minutos de filme.
A impressão é que Kaufman se preocupa tanto em deixar sua marca que põe de lado qualquer possibilidade de tornar as discussões que propõe mais complexas – e completas. Mesmo que acredite ser intelectualmente denso, Estou Pensando em Acabar Com Tudo é, na verdade, bastante trivial – o que não é necessariamente um defeito, mas nesse caso, a trivialidade acaba sendo mascarada por uma complexidade na forma da obra. A complexidade logo se esvai por compreendermos que muito do que ocorre não só não precisa de uma explicação, como não possui, mesmo que o filme se desenrole de um jeito que faça a busca pela solução do quebra-cabeças seu grande atrativo. Muito do que ocorre precisa fazer sentido apenas para uma protagonista cuja mente só acessamos quando ela assim deseja. E assim, fazendo parecer complexa uma discussão que, além de repetida na carreira do autor, é simples, Estou Pensando acaba soando um papo de bar, mesmo que tente ser muito mais do que isso.
Pondo de lado essa dificuldade de unificação – alinhar os temas com a linguagem, tornar complexo sem ser complicado –, é interessante como Kaufman passeia por gêneros para compor essa jornada física e mental dos personagens. A chegada até a casa dos pais de Jake, por exemplo, é cercada de mistérios. O lar é assustador, chega a ter marcas de “batalha” na porta do porão e a própria presença dos pais de Jake e do cachorro da família parecem ser algo místico, visto que eles não agem independentemente, mas surgem de acordo com a “invocação” da protagonista – quando a jovem se pergunta onde está o cachorro, ele praticamente se materializa em sua frente. Essa caracterização lúdica, que mais parece um fluxo de pensamento, também é utilizada para momentos mais oníricos, como uma inesperada dança que ocorre no clímax do filme.
Momentos como esses são interessantes pois mostram como cada situação é vista de acordo com as próprias expectativas e anseios da personagem. Estou Pensando em Acabar com Tudo é um fluxo de pensamento transformado em narrativa audiovisual – algo dificílimo de se filmar, diga-se de passagem. O que impede a obra de ser tão boa quanto poderia ser é justamente o esforço hercúleo feito por Kaufman para tornar verossímeis esses encontros entre real, absurdo e imaginário. Até porque, não são raros os momentos em que o filme simplesmente congela sua proposta de transitar entre gêneros e tons para mergulhar o espectador em uma verborrágica sequência de referências que, no fim das contas, pouco acrescentam como um todo – e acabam servindo apenas para pseudoespecialistas “explicarem” o filme por aí.
Como roteirista, o talento de Kaufman é notório. Como diretor, o novaiorquino ainda parece buscar manter sua assinatura sem que ela sabote sua arte. Porque, no fim das contas, é sim justo e interessante que um artista mantenha seu estilo para diferentes obras para contar diferentes histórias. Hong Sang-soo, que considero um dos melhores autores do século, é um cineasta conhecido justamente por fazer isso. O que separa Sang-soo de Kaufman, porém, é que, aparentemente, Kaufman está ainda encontrando dificuldade em fazer com que o estilo pelo estilo não sufoque a obra como um todo. Porque forma e conteúdo, afinal, são indissociáveis, e contar boas histórias no cinema requer mais do que roteiro e boas ideias visuais. Requer que este autor saiba alinhar ambos em uma unidade. E essa unidade passa longe de Estou Pensando em Acabar com Tudo. Esse estilo narrativo de fluxo de pensamento, no qual coisas surgem e desaparecem com a mesma intensidade que impactam seus personagens acaba por, em casos como o desse filme, criar microdramas que também surgem e desaparecem muito rapidamente. Uma efemeridade causada, talvez, pelo excesso de esmero técnico ou textual. Em suma: muito esforço para pouca substância, mas uma boa tentativa.