Filmes podem ser relevantes sob inúmeros aspectos: uma atuação brilhante, uma direção magistral, um roteiro matador, uma trilha inspirada ou mesmo uma fotografia encantadora. Estrelas Além do Tempo, segundo filme do americano Theodore Melfi (o primeiro é o decente Um Santo Vizinho), trata de um tema fundamental na sociedade norte-americana, principalmente após a eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos. Volta aos efervescentes anos 60 para trazer a discussão mais inconveniente dos dias atuais: o preconceito, representado no longa pelo racismo, é tão normatizado que se faz presente em todos as camadas sociais. Não importa o quão inteligente você seja.
A abertura do filme é belíssima. A criança Katherine Coleman (Lidya Jewett), enquanto caminha por um jardim, conta números: “15, 16, primo, 18, primo, 20, 21…”. Paralelamente, vemos seus pais conversando com um professor de Katherine sobre a aptidão da filha para Matemática. Os professores haviam se cotizado para levantar um pequeno fundo a fim de que ela se mudasse para estudar numa escola melhor. Fechando esta primeira sequência com uma montagem dinâmica, porém equilibrada, vemos Katherine resolvendo uma equação dificílima no quadro negro, com a naturalidade de quem soma 2 e 2. Em menos de 3 minutos, o filme estabelece que Katherine é um gênio e não deixa dúvidas quanto à sua capacidade intelectual.
Imediatamente, somos transferidos para 1961. Katherine, já adulta (e agora interpretada por Taraji P. Henson), está com suas amigas Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe) a caminho do trabalho. Na NASA, a agência espacial americana. O carro teve um problema e está parado no acostamento. E elas são paradas pela polícia. Apenas por serem três negras paradas no acostamento.
É preciso contextualizar o filme: em 1961, a NASA ainda não tinha seus poderosos computadores para rodar simulações e fazer as “contas chatas” da ciência espacial (inclusive, parte da trama de Estrelas Além do Tempo gira na IBM instalando o primeiro sistema). Para isso, existiam os “computadores”, que nada mais eram do que mulheres encarregadas de revisar cálculos e verificar a viabilidade de teorias dos físicos. Sim, era um trabalho considerado menor e, por isso, era desempenhado exclusivamente por mulheres.
Mas mesmo entre elas, havia uma separação. Pior do que ser “computador”, só sendo “computador de cor”. É exatamente esta a função de Katherine e Mary. Dorothy coordena a equipe, tem os encargos de uma coordenadora, mas não consegue ser promovida ao cargo, exatamente pela cor de sua pele.
Este é o ponto alto do filme: mostrar o racismo dentro de uma instituição que, por definição, reúne as mentes mais avançadas de seu tempo. Quando Katherine é escalada para ser computador do Programa Mercury, a supervisora Vivian Mitchell (Kirsten Dunst) diz “nunca tivemos um computador negro aqui. Por favor, não me envergonhe”.
Estrelas Além do Tempo possui bons e maus momentos. Enquanto expõe o racismo de forma crua e institucionalizada, é forte e chocante. Num dia, Katherine se serve de café; no dia seguinte, há uma cafeteira com a etiqueta “café para negros” na mesa. Claro, a cafeteira está desligada e vazia. Em outro momento, ela precisa ir ao banheiro, mas o único banheiro para “mulheres de cor” fica a quase um quilômetro de onde ela está, obrigando-a a correr com papéis NASA afora, usando o momento de alívio para seguir trabalhando, uma vez que perde muito mais tempo do que qualquer um quando precisa fazer suas necessidades. Contudo, Melfi escolhe a partir de certo ponto transformar estas incursões em passagens humorísticas, com uma trilha animada, como se o fato de alguém precisar andar perto dos dois quilômetros para usar o banheiro por ser negro fosse um percalço em lugar de um absurdo.
Recentemente assisti a Desventuras em Série (você pode ler minha crítica aqui) e Neil Patrick Harris está totalmente diferente do Barney de How I Met Your Mother. Não é o caso de Jim Parsons. Inclusive, a primeira aparição de seu personagem, o físico Paul Stafford, é uma gratuita imitação do Sheldon de The Big Bang Theory. O personagem “impregnado” em Parsons compromete o resultado aqui. Estrelas Além do Tempo não deveria nos fazer rir de certas situações. As amigas de Katherine, Dorothy (a primeira chefe de departamento afro-americana da NASA) E Mary (a primeira engenheira), têm suas histórias reduzidas. As barreiras que ambas enfrentam são minimizadas a quase nada pela falta de tempo em tela para cada uma.
Vendo de fora, é quase como se tivesse sido fácil.
Inegavelmente, alguns momentos tocam. Além da já citada abertura, o desabafo de Katherine diante de uma sala cheia de engenheiros da NASA a respeito do quanto é difícil ser uma mulher negra em uma instituição racista e machista, ou o pedido de casamento que recebe do coronel Jim Johnson (Mahershala Ali), já viúva e mãe de três filhas. Mas mesmo na cena mais tapa-na-cara-da-sociedade, a conclusão é tosca: o diretor do Programa Mercury Al Harrison (Kevin Costner) se choca e percebe, pela primeira vez em sua vida, que existe racismo no mundo. Ninguém é tão obtuso assim.
Feitas estas ressalvas, Estrelas Além do Tempo trata sem brilhantismos, mas de uma forma digna e tecnicamente correta algo que não pode ser silenciado. O racismo existe e não vai sumir sozinho. Apesar da estrutura do roteiro criar uma história de superação para tirar todos nós do cinema com a fé na Humanidade restaurada, não devemos sair da sessão pensando “ainda bem que ela conseguiu superar as dificuldades”, mas sim nos perguntando “por que precisou ser tão difícil?”
Porque a dura realidade é que não precisava.